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Fóruns de discussão de assuntos profissionais dos Técnicos Oficiais de Contas

terça-feira, 17 de agosto de 2021

As desilusões da Esmeralda

Em memória do JOÂO

Nota: O autor recomenda que, se ouça a música no exato momento em que está no texto.

Quase-Conto; Espécie-de-conto; Pseudo-conto; Faz-de-conta-que-é-um-conto...

 

Parte Primeira

 

1. Reencontro

 

Entusiasmada com o convite de casamento, feito por uma colega do secundário, rumou com destino a Esposende, esperando reencontrar uma série de colegas de quem tinha perdido o rasto.

Sentados todos na mesma mesa, um desses com quem nunca mais se cruzara, chamava a si as atenções em seu redor. Pelas suas gargalhadas e pelas suas expressões faciais, rapidamente o associou ao João, de quem tinha gratas memórias.

Uma das histórias que mais arrancou uma sonora gargalhada a todos, foi aquela que descreveu com todo o pormenor e detalhe, (dada a sua função de cronista no jornal da escola, com o pseudónimo de doutor faneca), cujo original, como fazia com todas as crónicas, deixara discretamente na sala de professores, e que relatava uma inscrição encontrada num tampo de uma secretária de uma das salas: “lábios e saliva, ingredientes essenciais para um beijo louco”. O cronista, para fazer um reparo sobre uma segunda douta opinião que lá tinham deixado, escreveu que quem a emitiu, possuía seguramente profundos conhecimentos de joalharia.

Depois veio o momento dedicado à dança, e a mesa inteira, por ele capitaneada, segui-o. Mas Esmeralda, cedo regressou a um canto, onde se sentou a recuperar. Ao fim de um longo período, sentiu uma voz possante e grave que lhe perguntava se estava tudo bem.

- Está, obrigada, apenas não tenho a tua pedalada, João.

- O que fazes na vida?

- Sou contabilista, profissão que não me dá a mesma vivacidade que a tua. Mas não és só professor, pois não?

- Deu para perceberes que dou aulas à noite, porque os alunos estão mais interessados na matéria e isso deixa-me tempo para a arqueologia, fazer levantamentos aqui e ali…

- E trabalhar para o bronze, antes mesmo do período estival, como disseste há pouco?

- Também.

- Em que campo arqueológico estás envolvido?

- Aqui, bem perto, no Castro de S. Lourenço!

- Vamos lá?

Espantado, mas contente, disse:

- Amanhã, bem cedinho, passo pela tua casa?

 

 

 

2. Primeiro Passeio

 

 

Pelas 9 horas da manhã, estavam a subir a íngreme ladeira que dá    acesso ao miradouro da capela de São Lourenço. E ali ficaram a contemplar…

Do topo da escadaria depara-se com uma majestosa paisagem a perder de vista, o mar e a foz do Cávado, cortada pelas 3 torres de Ofir, vendo-se mais lá ao longe os prédios altos da Póvoa. Como estava maré baixa, avistavam-se os famosos cavalos de Ofir, que são uma autêntica barreira, como todos os leixões junto à costa. Estes ficam submersos com as marés altas e são uma defesa natural das populações. Os fangueiros atribuem-lhes várias lendas, mas todas têm um ponto comum: as rochas resultam da petrificação dos cavalos. Uma lenda conta que um barco, vindo do Norte com homens e cavalos, foi empurrado e encurralado pelas artimanhas defensivas das populações. Os cavalos ficaram, por intervenção divina, a servir de barreira natural protetora. Porém há outra versão para a lenda, que aponta para o Rei Salomão, que teria mandado os seus homens virem a Ofir em busca de cargas  preciosas que existiriam na foz do Cávado. Como prova de gratidão aos povos locais, enviou uma frota de maravilhosos corcéis, mas uma medonha tempestade, acabou por provocar o naufrágio junto à costa, sendo ainda hoje visível a barreira que suaviza o mar naquele ponto, com a petrificação dos cavalos.

Este castro, que é o maior de Esposende, foi construído num dos locais mais defensivos desta arriba, com vertentes escarpadas e pedregosas, voltadas a sul. João falou-lhe das salinas, da quase extinta lagoa da Apúlia, do penedo da feiticeira e da localização da pia da virtude, danificada nos tempos conturbados de 74, onde se mergulhavam as crianças atacadas por maleitas, com a crença da sua purificação.

Percorreram o castro, passando pelas casas reconstruídas, do lado esquerdo de quem sobe para a capela, resultantes das várias ocupações entre os séculos terceiro e primeiro, antes de Cristo, casas redondas cobertas de palha e dos acrescentos em forma de “caranguejos”, por fazerem lembrar as suas tenazes.

Circularam junto aos locais das escavações, apreciando a evolução dos trabalhos e João foi-lhe contando as peripécias em que participava.

- Quando é necessário usar a picareta, é cá o João, que faz o serviço!

Seguiu-se uma pormenorizada descrição dos fortes construídos junto à costa, sobre os quais João também fazia alguns estudos. O Fortim Rego de Fontes, na Areosa, em Viana, o Forte de Paçô, em Carreço, o do Cão, na Gelfa e o da Lagarteira, em Âncora, que foram fortificações importantes no século XVIII. Mas só visitaram o de Paçô e o do Cão.

Perto das onze horas, tomaram o pequeno-almoço, numa padaria junto ao apeadeiro ferroviário de Moledo. Esmeralda sussurrou ao ouvido do João:

- Aquele senhor, na fila para comprar o pão, não te faz lembrar um conhecido maestro que usa uma bengala?

João sorriu e acenou afirmativamente, dizendo-lhe que ele tinha casa ali e que o via por aí muitas vezes.

Seguiram pelo areal e sentaram-se em frente ao Forte da Ínsua. Diz-lhe que datava do final do século XIV, a construção de um cenóbio, que os frades franciscanos galegos ali fizeram, como forma de estarem retirados. Porém deve-se a D. João IV a atual estrutura e daí ser conhecido por ser um forte setecentista.

- Um dia temos de vir com calma e encontrar o senhor que faz as travessias. Uma vez por século, é possível ir a pé até à Ínsua…

Passaram, ainda, pela pequena capela da Nossa Senhora do Bom Sucesso, que fica entre o parque de campismo e o areal, a poucos metros do local onde estiveram sentados.

Esta foi erguida em agradecimento, pela população local ter conseguido repelir a tentativa de desembarque das tropas de Napoleão, comandadas pelo Marechal Soult, durante a segunda invasão francesa; o mesmo foi conseguido, no dia anterior, pelas gentes de Cerveira, continuou o João.

- E sabias que os Franceses acabaram por entrar por Chaves?

- Sim sabia, lembro-me desse assunto e até há uma avenida, em Lisboa, em homenagem aos “Defensores de Chaves”, pela resistência que fizeram, apesar do desfecho.


Mais adiante, e de novo sentados na areia, João falou-lhe do seu nascimento. Fora fruto de uma paixão de um arquiteto com a mãe. Quando ficou grávida, é que descobriu que ele era casado e que recusava assumir a paternidade. Levou-o à justiça e perdeu. O seu pai, que era viúvo e casado em segundas núpcias, expulsou-a, mas ficou-lhe com o filho para criar. Foi a enteada do avô, que ele considerava como mãe de afeto, que o criou. Com a mãe mantinha uma regular relação aos domingos, embora fosse visita lá em casa no natal, depois da morte do avô.

Quando fez 18 anos, a mãe levou-o, ao longe, para lhe mostrar quem era o pai e, assim, ele ficar a conhecê-lo.

- Aquele rapaz que está ao lado dele é o teu irmão! – disse-lhe a mãe.

Um dia, ao ir de autocarro, para a escola, onde estava a fazer o estágio, apercebeu-se que o irmão acabara de entrar e ao sentar-se no banco em frente ao dele, ficara perturbado. Não tirando os olhos de um livro, evitou que se estabelecesse algum contacto embaraçador.

Esmeralda ficou admirada com a confiança que ele estava a depositar nela, mas apesar de querer fazer algumas perguntas, optou por as deixar para quando sentisse que a amizade entre eles fosse mais consolidada. No fundo, não se sentia no direito de o inquietar.

Falou-lhe, ainda, das namoradas. De uma que se sentia uma diva com os seus longos cabelos e lhe cantava Maria Bethânia … e logo aquela cantora que ele detestava … E de uma outra, fisioterapeuta, que insistia em ter relações escondidos nos arbustos da urbanização, duma zona nobre do Porto, fazendo questão, de muitas vezes saírem do conforto do apartamento dela, só para sentir a adrenalina no seu auge. Se no início, apesar do bizarro, alinhava, depois começou a tornar-se algo doentio a ponto de terem posto fim ao relacionamento. Infelizmente ela morrera com um tumor nos plumões, no ano anterior.  

 

 

3. Pelas ruas do Porto

 

 

Esmeralda dirigiu-se à Rua Anselmo Braancamp, onde João vivia, aceitando o convite que ele, entretanto, lhe fizera.

Sentados à volta da mesa-redonda da sala de jantar, entraram nas confidências dos tempos do secundário. Esmeralda recorda-lhe que aquele beijo que trocaram, fora uma aposta feita entre quatro colegas, para saber quem ficava no pódio, de quem dava, no mais curto prazo de tempo, uns beijos com ele. Ela tinha ficado com a medalha de ouro, mas depressa se arrependeu, porque ele não lhe tinha saído da cabeça. A dicotomia de dar continuidade ao beijo e a partilhá-lo com outras três, levara-a a concluir que tinha sido uma parvoíce e lhe saíra demasiado cara.

- Como sabes se as outras duas ganharam ou não, as suas “medalhas”?

- Tal como eu, elas relataram as suas experiências contigo, só uma disse que nem tinha tentando!

- Sabes Esmeralda, não se seguiu mais ninguém nas semanas seguintes; o beijo e a tua repentina rejeição, deixaram-me num estado de apatia, pelo que sinceramente, se tentaram nem dei por isso.

- Iam inventar?

- Nós, os homens, temos fama de nos gabarmos de coisas que não fizemos, é natural que vocês façam o mesmo … Nós construímos sequências eróticas para as pívias, que servem muitas vezes, para contar aos outros cenas que nunca tivemos, mas que só imaginamos. Levantou-se e foi buscar uns apontamentos.

- Olha só, como ao longo dos séculos, se faziam relatos destes assuntos. Repara nesta passagem do Pêro Vaz de Caminha: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, cumpridos, pelas espáduas; e as suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas…”

- Agora olha esta decisão judicial: “Vistos os autos, se prova que, indo a autora para a fonte, lhe saiu ao encontro o réu e, levantando o faldistério, lhe encaixou o pífaro leiteiro, no vaso natural e, esgaravatando, ficou consumada a desfloração. Portanto, condeno o réu a que pague as custas e selos, e receba a moça e absolvo-o das garras da Lei, Beja, 25 de novembro de 1771”.

São relatos, que verdadeiros ou não, nós os homens sempre fizemos e que inspiram muitos contos eróticos.

- Que parva que eu fui!!

- Que parvos que fomos, minha querida….

Os olhos fixaram-se um no outro e o silêncio prolongado fez as cadeiras ranger. Esmeralda sentiu as borboletas na barriga, até que os seus lábios se voltassem a encontrar.

- Precisamos recuperar … disse-lhe.

- Recuperar nunca se recupera, aconteça o que acontecer será sempre algo que só agora começa, respondeu o João.

Esmeralda dirigindo-se para a janela do quarto do João, abriu-a e perguntou:

- Estas são as traseiras das instalações da Cooperativa dos Pedreiros?

- Não, minha querida, era a fachada das suas antigas instalações, há muitos anos desativadas. Quando lá andei dentro, vi um espaço dedicado à colocação das bicicletas com uns ganchos, porque a maioria dos pedreiros vinha da zona de Penafiel e só regressavam a casa aos fins-de-semana.

O Presidente dos “Pedreiros” quando foi a Paris, a uma exposição industrial, comprou uma máquina para cortar o granito em placas. Os engenhosos “pedreiros”, vão adaptar a máquina para fazer as suas “colunas circulares”, o que causou espanto e curiosidade em todo o mundo. Uns americanos vieram às suas instalações saciar a curiosidade e ver essa adaptação, eles com medo de serem ridicularizados, contornaram a visita.

Outra curiosidade, disse-lhe também, era que desde a fundação e até há poucos anos, só os pedreiros eram sócios da cooperativa, todos os restantes trabalhadores, desde carpinteiros a engenheiros, eram assalariados.

A fundação da cooperativa, ocorrida em 1914, foi fruto da iniciativa dos anarcossindicalistas, a grande força proletária da época, que foi preencher uma lacuna, deixada pela crispação entre republicanos e católicos, tentando colmatar o espaço caritativo, que as confrarias tinham na assistência, na doença, na viuvez e na orfandade.

Na altura foram criadas várias cooperativas, como a dos estucadores, entre outras. A dos Pedreiros resultou da feliz cooperação entre o Arquiteto Marques da Silva, o Presidente e Fundador José Moreira da Silva - aquele Largo onde as ruas de D. João IV e da alegria se juntam - que se iniciou na construção da estação de S. Bento, obra do Arquiteto, e de muitos pedreiros que trabalhavam com eles, aquando da construção da Estação de S. Bento, e que iriam  ser os seus fundadores.

Mas foi à forte ligação entre aqueles dois homens, um na gestão, outro na arquitetura, que se deve a longevidade quase centenária da Cooperativa, que ocorrerá lá para 2014.

A cooperativa tem uma vasta produção: o edifício da Câmara Municipal do Porto; o Monumento à Guerra Peninsular, na Rotunda da Boavista; as igrejas das Antas e do Marquês; o palácio dos Correios; o edifício do Jornal de Notícias e o Palácio do Comércio, na Rua Sá da Bandeira, são apenas algumas das obras visíveis que há no Porto. Das invisíveis, salientou o suporte do muro da Rua da Restauração ao jardim do Carregal, por cabos de aço que passam pelas catacumbas do Hospital de Santo António, depois de duas derrocadas que ali ocorreram, fruto quer de um lençol freático, quer do intenso tráfego que se faz sentir naquele troço.

No estrangeiro, destacam-se as colunas circulares, no palácio de Saddam Hussein, em Bagdade, ou no Deutsche Bank, em Frankfurt.


Os edifícios Torre Miradouro e Trabalho e Reforma, são prédios de rendimento, que suportam os complementos sociais que os cooperantes recebem na reforma. Ambos da autoria da filha de Marques da Silva, Maria José Marques da Silva, e do filho de José Moreira da Silva, David Moreira da Silva, casados, e ambos arquitetos, que deram continuidade à obra dos pais.

- Vês aquela estátua de um pedreiro na fachada do edifício? Há uma cópia no edifício Trabalho e Reforma, que fica na Rua Nossa Senhora de Fátima, quase junto à Rotunda da Boavista. A autoria é do Escultor Lagoa Henriques.

- E se fossemos ver in loco e dar uma volta àquela zona?

Ao passar pela Torre Miradouro, João aponta para o desenho que cada azulejo do revestimento do edifício tem: é um escopro estilizado, ferramenta que os pedreiros usam e que é o seu símbolo profissional. 

- E dos escultores!

- Sim, claro!

- Nunca tinha reparado no pormenor, só no efeito do conjunto dos azulejos, respondeu ela, sem tirar os olhos deles.

Continuaram e, subitamente, João parou na casa com o número 665 da Rua da Alegria.

- Sabes quem viveu aqui?

- Não foi a Guilhermina Suggia?

- Sim, mas também viveu com os pais em Matosinhos na Casa Leão, que ainda existe. E talvez por isso, ela e Pau Casals (ou Pablo em castelhano), chegaram a ensaiar, juntos em casa do vizinho e amigo Armando Lopes, conhecido musicólogo ligado ao regime, mas em cujas recolhas Michel Giacometti se apoiou para fazer o magnífico acervo da música tradicional portuguesa. Armando Lopes era conhecido na música pelo pseudónimo de Armando Leça e era o pai de Óscar Lopes e de Mécia de Sena.

- A viúva do Jorge de Sena?

- Sim, respondeu João.

Desceram para a rua de Santa Catarina. Pararam junto ao edifício onde funcionava a Loja e a Fábrica Confiança e onde Aurélio Paz dos Reis filmou o que é considerado o primeiro filme português: «Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”. E, ali parados, perguntou-lhe:

- Imaginas quem trabalhava na loja da fábrica e era visita do Paz dos Reis e do mestre Domingos Alvão, que tinha uma loja ao lado do Majestic?

- Não.

- Amadeu de Souza Cardoso, minha querida. A família tinha-o mandado para aqui pois tinha uma quota relevante nesta bem-sucedida fábrica de roupa branca. Isto, porque ele andava pouco interessado pelos estudos, só tinha jeito para fazer uns sarrabiscos, como os pais classificavam os seus desenhos e caricaturas. E que caricaturas! Olha fez uma da Guilhermina Suggia, quando a ouviu tocar pela primeira vez.

- Também estudas estas questões?

- Não, são amigas minhas, com quem falo destes e de outros temas e que creio, preparam um livro sobre este assunto.

- E se fossemos subir aos píncaros do Porto? disse João.

- Aonde? Às torres do Porto?

- Sim.


                                          4. Pelas alturas

 

Começaram pela torre da Igreja da Conceição no Marquês; uma vista de vários ângulos, apanhando a cidade quase toda - Hospital de S. João, Monte Castro em Gondomar, Monte da Virgem em Gaia, a imensidão do mar.

Depois, aproveitando as festas do Senhor do Bonfim, e como os escuteiros estavam a promover a subida à torre direita da igreja, escalaram umas escadas muitos frágeis, mas a vista sobre o Douro era soberba.

Atravessaram o Douro e lá estava o Zimbório da Serra do Pilar. Uma magnifica vista do Porto e do local onde as tropas miguelistas massacravam a cidade, durante o longo Cerco do Porto.

Ao descerem, Esmeralda pediu-lhe que fosse à sua frente, porque tinha vertigens. João puxou-a para uma espécie de guarita e conseguiram espreitar para o interior da igreja. Quando visitaram a igreja – que tinha ficado totalmente esburacada com as respostas das forças liberais - conseguiram, a custo, encontrar o local onde estiveram a observar.

Foi na descida da Serra do Pilar para o Jardim do Morro, que Esmeralda lhe falou do seu encantamento pela história dos lugares e por estas visitas, que contrasta com as desilusões com a sua profissão. Para a confortar João deu-lhe a mão e ela ofereceu-lhe um sorriso.

- Quando estava no Instituto, tinha uma enorme paixão pela contabilidade, a financeira e a analítica, sentia imenso prazer a estudar e a resolver os desafios que eram colocados.

- Então onde entrou o desencanto, minha querida.

- Talvez por culpa minha, fiquei “agarrada” à parte menos criativa. Acabei cada vez mais uma “escrava” a cumprir obrigações declarativas. São cada vez mais e sempre em atualizações, agora por uma coisa, depois por aqueloutra, mas sempre dependente de um modelo, uma obrigação, para uma quantidade inacreditável de recetores de informação, sempre novos prazos e muita informação redundante, muitas vezes para a mesma entidade. Sobretudo desde o fim das fronteiras físicas. Se isto continuar assim … daqui a uma década ou duas, é declarações dia sim, dia sim.

Mas não era só isso. Um dia fizera um estudo a uma encomenda de um dos principais clientes, com sede num paraíso fiscal. Desconfiava que havia algo errado, quando comparado com outros clientes. A contabilidade analítica que eu tanto gostava e da qual estava afastada, consegue dar uma informação preciosa à gestão. Apresentei o trabalho ao administrador principal e chamei à atenção que tinha feito a transação, por um valor ligeiramente acima do ponto crítico. Conceito que nos dá, quantas unidades temos de produzir para absorver os custos de produção. A reação dele foi de quem não gostou que eu tivesse tocado no assunto.

- Como assim, então isso não era importante para ele?

- Ao fazer o trabalho, fiquei com alguma segurança, perante a responsabilidade que efetivamente não tenho nesta situação. Claro que aquela empresa no paraíso fiscal é, de certeza, dele e o raspanete para que deixasse o assunto nas mãos do diretor financeiro, só prova isso.

- Como?

- Já me tinham dito que em muitos casos, as vendas são feitas a empresas de quem são beneficiários efetivos – deles ou de testas de ferro – quase ao preço de custo e depois são essas empresas que fazem as verdadeiras transações. As mercadorias são entregues diretamente a clientes deles, sem passarem pelo armazém do comprador. São operações triangulares, como agora se diz. Nem sempre isso é do conhecimento direto do contabilista que assume a contabilidade. Muitas vezes estamos à margem do circuito. Nem me pedem para lhes fazer a declaração do IRS para eu não ver nada que não deva.

- E a tua responsabilidade?

- Em tese é minha, pelo que guardei aquele trabalho como prova pois, pelo menos cheguei a fazer o alerta. Sobretudo agora que apareceu uma associação para regular a profissão. Estivemos muitos anos em que a nossa assinatura, nem era necessária nas declarações fiscais.

- Muda de profissão!

- Isso é um dado adquirido, não hesito em fazê-lo, quando tiver de ser!

- Vais fazer o curso de História?

- O interesse já havia João, mas desde o momento em que estivemos em Esposende que a ideia ocupa cada vez mais espaço.

                                               

                                              5. Pelas heroicas


As muitas saídas juntos, permitiram a Esmeralda conhecer os saberes do João, e vão ao lançamento de um livro que recorda uma série de vidas e de obras de lutadores contra a ditadura fascista.

Havia um coro, na apresentação, a cantar as «As Heroicas», do Lopes Graça.

O maestro ao apresentar Ó pastor que choras, tenta associar o tema a uma das mais célebres vigílias de católicos. João sorriu e frisou o sobrolho. O maestro terá percebido e deu entrada ao coro. João deu a entender que depois contava.

Já na rua, diz-lhe que se lembra de ler no diário do poeta José Gomes Ferreira.

Ele começava por recordar um episódio ligado àquela “heroica”. Um dia ia num elétrico trauteando-a baixinho, quando de repente um sujeito se levanta para sair e dá continuidade em assobio.
Ao passar debaixo da sua janela, levantou-lhe o chapéu, como saudação, sem lhe devolver o olhar.

Aquilo foi um momento de felicidade que sentiu, perante àquela cumplicidade tão imprevista. E o relato continuava com detalhes:

Muito perto de 27 de setembro de 68, ou seja, nem na vigília da Capela do Rato, em 73, nem na da Igreja de S. Domingos de 69 (onde o Padre Fanhais, canta o poema de Sophia, “Vemos ouvimos e lemos”, quando Paulo VI agenda o dia 1 de janeiro como dia Mundial da Paz) relata a ida de uma série de escritores a uma audiência com o Novo Presidente do Conselho, chamados por este, por causa da Sociedade Portuguesa de Autores que a Pide, mais uma vez, encerrara.

Se as heroicas estão datadas e foram na sua maioria compostas num verão onde estão todos juntos e os poetas aceitam o desafio de Lopes Graça, aquela terá sido uma encomenda expressa ao poeta. Visitando-o em sua casa, leva-lhe uma partitura com palavras sem nexo, mas ajustadas à melodia. Pede-lhe então quatro quadras, com o primeiro e o terceiro verso de 5 sílabas, o segundo e o quarto, com 7 e que as rimas do primeiro e do terceiro têm de ser graves. E as do segundo e do quarto, agudas. Graça gostou tanto do poema, que tenta publicá-lo na Seara Nova.

A censura argumenta que era uma crítica deliberada ao Cardeal Cerejeira, que pouco antes, tinha pregado um sermão, em que terminara num profundo pranto, lamentando-se, com a falta de fiéis, de padres e de Deus. “Como iam os censores ser convencidos de uma mera coincidência, logo ele que tinha colocado aquelas cerejas de prepósito nas orelhas do pastor de Alta Púrpura?”

Curiosamente a censura deixa publicar o “Acordai”. Cantar nos anos da ditadura era uma religião e o Graça era Padre Mestre.

O coro tinha também interpretado o Canto do Livre do Soares de Passos, único, talvez, poeta das heroicas, que não era contemporâneo do Graça, porém, como é apenas uma parte do poema, há quem entenda que aquela liberdade que ele canta, será mais a sua morte. Aliás o poema foi dedicado ao seu amigo Alexandre Braga, seu colega em Coimbra. Morreu muito novo, aos 33 anos de tuberculose. Da mesma doença, morre com 31, o médico e escritor Júlio Dinis, um grande amigo do seu irmão, tomando a iniciativa de colocar um poema dele no seu túmulo, que está em Agramonte.

- A tuberculose levou muitos escritores, o António Nobre, foi um deles, lembrou-me de termos dado isso na escola, João!


                                             6. Paços do concelho


Passam, junto ao edifício da Câmara do Porto no regresso, e João para em frente junto à estátua de Almeida Garrett.

- No local desta rampa, estava no projeto e chegara a estar aqui, uma imensa escadaria que os homens do estado novo - Duarte Pacheco - mandam demolir, desautorizando as gentes locais, porque ela seria um símbolo de um local onde se exercia o poder, e isso estava reservado a Lisboa.

- Vês ali aquelas 4 zonas na fachada de granito não trabalhado? Eram para levar uns nichos, chegaram a estar lá, mas foram retirados e jazem nas instalações de Moreira da Maia dos “Pedreiros”. Acolheriam 4 esculturas de personalidades com forte ligação ao Porto: o Infante D Henrique que nasceu cá, os escritores Camilo e Garrett…

- Então este devia estar ali em cima!

- Sim, e mais um, o Afonso Martins Alho, do “fino como o alho”, que foi o responsável pelo excelente - para o nosso lado – acordo com os ingleses, obrigando a que a mais-valia da venda do produto “vinho do Porto” ficasse cá e não fosse para fora do país.

- Excelente João, conhecia o termo, mas não fazia ligação, só à adega do olho…

- Que fica na Rua com o seu nome, entre a da Flores e a do Mouzinho!

Na Igreja dos ingleses - São Tiago - no largo da maternidade, pode-se ver o nome das famílias que vieram para cá. É como estivéssemos a ver uma carta de vinhos do Porto, nas primeiras filas reservadas a cada uma dessas famílias.

- Olha Esmeralda, tu também tens de te iniciares na pesquisa de, por exemplo, quem se notabilizou em assuntos mais ou menos ligados aos números, aos negócios e podes pesquisar nas bibliotecas. -remata João.

 

 

 

 

 

Parte segunda

 

 

 

1.    Inquietações

 

O João ligou-lhe perto das onze e meia da noite de quinta-feira – estava em época de escavações - dizendo que ia levar a casa o afilhado do irmão do Professor Eduardo e que iria num pé e vinha noutro e que já não voltava a ligar-lhe.

- Amo-te! Beijo!

- Têm cuidado meu amor! - Respondeu-lhe.

O despertador tocou, como sempre, às sete da manhã. As notícias do rádio davam conta de um violento choque frontal, na nacional 13, junto a Belinho que provocou 2 mortos. Inquietou-se ligou a televisão na cozinha à procura da notícia. Ligou ao João. O telemóvel estava desligado. Sete e vinte, o telemóvel tocou. Finalmente o João ligava? Não, era um colega que o acompanhava nas escavações. Disse-lhe que estava a sair de Esposende e que dali a uma hora estaria lá em casa.

- O acidente foi com o João? Como é que ele está?

- Não demoro, Esmeralda. Respondeu-lhe Mário.

Esmeralda estava no sétimo mês, dali a 2 meses a Rita nasceria. Tomou um banho. Vestiu-se e ficou à espera. Estava paralisada. A inquietação cristalizava. Tinha a certeza que acontecera o pior. Lembrava-se bem de ter passado por aquelas curvas em Belinho e do João lhe ter falado nas famosas corridas em contramão, que muitas vezes lá se faziam, e que acabavam em mortes; mas raramente se conseguia provar que eram apostas. Dizia-lhe o João que quem fazia isso apostava que assustado o condutor que vinha na sua mão, logo teria a iniciativa de guinar para a esquerda; essa era a “vitória” do “corredor”. Mas nas curvas isso raramente se conseguia, ou por falta de tempo, ou por falta de destreza.

Esmeralda, para se controlar, pensava: o Lada vermelho-escuro era um jipe espartano, como o João dizia com orgulho. Um dia, nuns semáforos sentiu um ligeiro toque na traseira e o João saíra para ver os estragos; o outro tinha desfeito nele a frente do carro, enquanto no Lada nada acontecera. E neste acidente o espartano teria aguentado o embate, se tivesse sido com ele?

Nem uma hora esperou. Mário tocou à campainha. O coração acelerou. Sim foi com o João. Abraçou-a e deixou-a estar a absorver o impacto.  Esmeralda ficou aterrada, sem forças … de cabeça vazia … num choro copioso, agarrada à barriga.

Por fim, disse-lhe que queria ir vê-lo.

– Não podes! Fazia-te mal. Os corpos ficaram irreconhecíveis. Não sabiam como provar, mas a polícia pensava que, dada a violência do choque frontal, se tratava de uma corrida. Pelas marcas no piso, chocaram contra o João. Ele vinha no sentido Viana-Porto. Era uma da manhã. Os dois condutores tiveram morte imediata. Os vizinhos disseram que passaram mais carros e andaram, prova que a “corrida” era seguida pelos apostadores. Não há testemunhas. Só a posição dos carros e a denúncia à polícia, dez minutos antes, de um condutor referindo que um carro em contramão quase lhe provocava um acidente na reta, não fosse ele ter-se desviado. Essa discrição aponta para o outro carro.

Mário explicou tudo, calou-se e manteve Esmeralda nos seus braços.

Passados largos minutos disse-lhe:

- Esmeralda tens de te recompor; a tua filha precisa de ti. A tua vida e a dela têm de continuar. Pedi que recolhessem provas biológicas do João para tu, que estas em final de tempo de gravidez, usares   no processo de paternidade.

- O João tanto falou em casarmos. Eu é que queria que fosse mais lá para a frente. Como é possível eu perder o amor da minha vida? Lamentava-se entre lágrimas e soluços.

- A Clara está a chegar e vai ficar contigo. Já nos organizamos para que não fiques sozinha nos próximos dias, Esmeralda.

Pediu à empresa só 3 dias de férias, porque tinha obrigações para cumprir. Foram, no entanto, uns longos dias bem negros.

Logo na quarta-feira recomeçou a trabalhar. Como não era casada com o João, e estavam há muito pouco tempo a viver juntos, optou por não abrir conflitos, nem dar grandes justificações. Um dos administradores passou por ela, fez-lhe uma vénia e questionou-a apenas para saber se o pedido de reembolso de IVA tinha sido feito. Respondeu-lhe, que como sempre, tinha seguido antes do final do mês.

A meio da tarde do dia seguinte, foi chamada ao gabinete do diretor. Ele começou por fazer um grande elogio ao seu trabalho e às suas capacidades e que lhe seria entregue uma carta de recomendação, justificando-se com a filosofia da empresa quanto às parturientes e, por isso, seria substituída em definitivo.

- Mas não pode despedir uma grávida!!!!

Ele sorriu. Ela nunca pensou que ele fizesse o mesmo a quem estava na parte administrativa, como fazia à restante mão-de-obra da fábrica de confeções. As operárias iam para tribunal e ganhavam, mas ele recorria. Elas voltavam a ganhar. Vinha o ministério do trabalho, aplicava multas, mas acabavam por nunca ser reintegradas.

O malvado gastava uma fortuna com isso, seria misógino, com certeza absoluta.

Claro que ela ia recorrer aos tribunais, mas sabia que seria uma longa e inglória batalha. Procurou e viu um anúncio no jornal da cidade, para um trabalho temporário por um mês; nem hesitou em responder, mas colocou a sua condição de grávida, já acima dos 7 meses, para não criar algum mal-entendido.

No dia seguinte recebeu a resposta. Era para ser atriz num filme pornográfico. Nem acabou de ler a contrapartida financeira. Respondeu-lhe que se considerava insultada na sua dignidade. Se era para isso, deveriam dizer expressamente, ou dar a entender que se tratava de algo adverso a mulheres sérias como ela. Terminava com um “Aliás qual foi a parte dos 7 meses de gravidez que não entenderam?”.

A resposta nem demorou. – “Saiba menina que os filmes com gravidas em final de tempo são os mais procurados, pelo que fomos generosos na contrapartida financeira”.

Esmeralda gritou um sonante: “IMBECIS!” e tentou aclamar-se. Pôs no leitor de CDs a primeira Cantata de Natal de Fernando Lopes Graça, que o João lhe oferecera. Carregou na faixa  – faixa  – Pedida e Confusa:

 

 

 




«Pedida e Confusa»:

Confusa, perdida,
Sem alma, sem vida;
Remédio aos meus males;
Onde o acharia?

Sozinha nos bosques
Se um anjo me guia,
Em tantos enleios
Alívio teria

Ai, triste pastora,
Neste ermo sozinha,
Que os anjos me ensinem
Onde é a lapinha

Mas, ai, que eu não posso
Mais longe seguir…
Velai o meu sono,
Deixai-me dormir.

 

 

 

Chorou e sem forças deixou-se ficar; nisto sentiu na sua barriga um movimento, endireitou-se: a Rita chamava-a.

 

 

2.    Desespero

 

Poucos dias depois encontrou-se com a Clara numa esplanada, para tratar das diligências que teria de fazer por causa dos direitos da Rita, dos da mãe do João, e da documentação para o Conselho Diretivo da escola do João, ao qual ela pertencia.

Clara, também se prontificou a falar com um advogado que lá dava aulas, por causa do despedimento dela e ia-lhe dar conta da situação.

Passou um amigo da Clara, que era um destacado dirigente do partido que estava no Governo. Clara convidou-o a sentar e aproveitou para lhe dar conta da situação de Esmeralda. Respondeu com firmeza que isso era uma ilegalidade e que era inadmissível. Logo, Esmeralda respondeu-lhe.

- Mas sabe que lá na fábrica, as parturientes sempre foram despedidas. Sempre ganharam na primeira estância e nos recursos, mas nenhuma foi reintegrada. Preferem as multas e os elevados encargos com isso, em nome da produtividade.

Conformado, admitiu que isso era sempre um problema quando as empresas faziam letra morta da Lei e da Justiça.

Ela aproveitou para acrescentar que na sua profissão de Contabilista a Lei não as protegia, dando alguma margem às empresas para as situações de pré e pós-parto. Admirado pela situação de Vacatio legis, prontificou-se a falar com o secretário de estado, seu amigo do “peito” e que assegurava que em três tempos a situação seria colmatada.

- Nunca ninguém pugnou por isso? Estou admirado por nunca ter ouvido falar no assunto. Esmeralda esclareceu-o:

- Foi criada uma associação profissional, há muito pouco tempo, pode ser que agora o assunto seja resolvido; mas como são mais homens que mulheres é natural que não pensem nisso.

- Se tal existisse era bom para as parturientes, mas seria um quebra-cabeças para o fisco. Já viu que se uma empresa tivesse uns milhares de contos para pagar a contratava a si, neste seu estado? E soltou uma risada que mais parecia uma hiena.

Incrédula com o cometário, Esmeralda, não sabia se deveria dizer algo à criatura ou enfiar-lhe uma cadeira pela cabeça abaixo. Talvez percebendo que tinha ido longe de mais, despediu-se apressadamente, mas reiterando que ia tratar do assunto com o amigo.

Clara estava também escandalizada com o comentário.

- Sabes Clara, apesar do comentário ele tem alguma razão. Nas médias e grandes empresas, os empresários deviam ser obrigados a substituir as contabilistas, como era o meu caso. E deixar essas dilações para pequenas empresas e para as minhas colegas que trabalham de forma isolada.

Aproveitou e contou-lhe o episódio do anúncio.

Os direitos das mulheres estão longe de serem uma conquista terminada. Há um longo caminho para mudar mentalidades.

 

 

 

3.    Mudar de vida

 

A prima Amélia, que tinha emigrado para a Suíça há uns anos, ligava-lhe, agora muitas mais vezes, desde a morte do João e sempre a incentivá-la

- Esmeralda, está a chegar o fim do tempo em que podes ficar em casa; já conseguiste alguma coisa?

- Não … quem me vai admitir? Ainda eu omito que tenho uma recém-nascida, para evitar que se recusem a dar-me o direito à aleitação. Num caso cheguei mesmo a dizer que não iria exercer esse direito. Ficaram de me dar resposta, mas nunca mais disseram nada. Na dúvida …

- Não me leves a mal, prima, hoje falei com a diretora financeira aqui do Hotel onde trabalho. É muito simpática e como vão admitir mais uma funcionária para as limpezas dos quartos e sendo nós os portugueses muito considerados, perguntou-me se conhecia alguma interessada.

Falei-lhe de ti e do que te aconteceu. Pedi-lhe para esperar até falar contigo. Desculpa, não me leves a mal, mas sei que aqui ganhas mais do que como contabilista, como estavas lá nas confeções. Além disso, podes vir cá para casa, enquanto te instalas; e para a Rita, não falta onde a deixares. Quem sabe, se com o teu curso, não possas, mais tarde, arranjar algo na tua profissão … desculpa …

- Só te tenho a agradecer Amélia, deixa-me falar com a minha mãe e ainda hoje te respondo. Juro-te que isso me passou pela cabeça, mas agora, nem hesito, minha querida.

 

 

4.    Alucinação

 

Segurando com firmeza a mão da Rita, de 5 anos, Esmeralda aguarda no aeroporto Francisco Sá Carneiro, o voo de regresso à Suíça, depois de uns dias de férias, para rever a sua mãe e alguns amigos.

Um homem choca contra ela. Perante o ar atónico dela, como quem estava a ter uma alucinação, o homem pede desculpa e agarra-lhe o braço. Foi a vez de ela pedir desculpa, desastrosamente, mas ele tinha fortes parecenças com um grande amigo, um querido amigo … disse Esmeralda.

- Já estou habituado, muitas vezes cumprimentam-me pessoas que eu não conheço de lado nenhum e há alguns anos que vejo muitas recções com a sua. Pessoas que ficam especadas a olhar-me com se eu fosse um fantasma. Quando eu tinha os meus vinte e dois anos, entrei num autocarro no Marquês e sentei-me nos bancos em que ficamos frente a frente; no outro lado havia um rapaz que me devolvia a minha imagem, apenas usava óculos e tinha os cabelos compridos, como diferenças básicas. Ao meu espanto e aos meus movimentos de inquietação no banco, o que mais me intrigou, foi a sua indiferença nem retirando o olhar do livro que aparentemente lia. Atónito fui incapaz de lhe dirigir a palavra.

Esmeralda enregelou. Mas queria entender a situação.

Era a mesma descrição que João lhe fez, quando lhe falou no assunto. Só podia ser o irmão dele. A Noémia, como ele chamava à mãe, quando o levou a conhecer, ao longe, o pai e o irmão, ele ficou a saber da sua existência, mas pelos vistos o irmão não sabia da sua.

Será que afinal a Noémia teve gémeos e eram monozigóticos? Cada um tinha ficado com o “seu” fruto do amor que tiveram? Será que era aquilo que João lhe queria contar, quando lhe perguntou se já lhe tinha contado a história e ela lhe disse que sim?

As duas reações, que ela agora ficava a conhecer pelos dois ângulos, eram incrivelmente coincidentes, mas a do João era, afinal, de quem sabia que eram gêmeos e por isso evitou o olhar, como ela registou quando ele lhe relatou no dia em que falou no assunto.

- Mas como o conhece será que me sabe dizer onde o posso encontrar. Suplicou-lhe!

- Infelizmente ele faleceu há 5 anos. Em 4 abril 1998. Respondeu-lhe.

- Sabe em que cemitério está?

- Foi inumado em Agramonte, mas as ossadas foram transladadas para um cemitério de Vila do Conde.

- E sabe em que dia nasceu?

Esmeralda ia dizer, mas hesitou …

- Não me recordo!

- Mas sabe a data da morte?

- Foi uma data trágica. Um violento acidente frontal. Além disso a filha … a minha filha nasceu dois meses depois a 4 de junho.

- Sabe, sou filho de mãe incógnita. O meu pai e a mãe Rosa, a sua esposa que me criou, sempre se recusaram a dar-me uma explicação plausível. Sempre acreditei que me escondiam muita coisa.

Esmeralda continuava a não tirar os olhos do rosto dele. Tinham o mesmo sorriso, os mesmos gestos, as mesmas expressões faciais…

- Nasci a 19 de julho de 1966…

Esmeralda, sentiu que ele a estava a testar, porque não acreditava na falta de lembrança da data de nascimento do seu grande amigo.

- … se me visitar ou me arranjar forma de saber qual o cemitério, agradeço-lhe. Vá um dia a Paris, visite-me. Sou Pintor. Tenho atelier junto ao parque de Bolonha. Fique com o meu cartão por favor.

- Obrigada.

Esmeralda olha para ele, olha para a Rita e por segundos fica presa ao chão …

Guardou o cartão e só o leu, quando ele desapareceu do seu ângulo de visão. A data não lhe saia da cabeça, era a mesma do João. E o nome dele era Luís João, exatamente o inverso do seu João Luís. Daí que quando lhe chamavam João, ele nunca ter deduzido que a pessoa com quem o confundiam tinha o mesmo nome. Teriam seguido o exemplo arquetípico de justiça do Rei Salomão?

Conhecia a história de uma amiga da mãe, que era filha de mãe incógnita, porque como o pai era casado, nesse tempo, os filhos que tinham nascido fora do casamento, só os podiam assumir se o nome da mãe fosse omisso. Terá acontecido o mesmo ao João e ao Luís?

Que fazer? Dizer-lhe que a Rita era a sua sobrinha? Contar-lhe o que sabia? O pai seria vivo? Que direito ela tinha de intervir nesta história? O João nunca mais tinha tocado no assunto e se no início lhe tinha parecido uma honra a confiança que ele teve ao contar-lhe a sua vida, ela nunca ousou retomar o tema, por considerar que seria algo, que o deixava desconfortável. E o resto, aquilo que ela não sabia? Seria razoável ficar a meio de uma história que ela não conhecia direito e com isso o Luís ficar ainda numa situação pior?

Se ao menos a Noémia não tivesse já falecido.

Aconchegou a filha com a manta e deixou que os pensamentos se dissipassem nas nuvens e as lágrimas de saudade do João escorrem-lhe pelo rosto.

 

 

 

 

 

 

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Os poemas da duas heroicas citadas:

 

 

 

José Gomes Ferreira (Oh Pastor Que Choras)

Oh pastor que choras
O teu rebanho onde está?
Deita as mágoas fora,
Carneiros é o que mais há


Uns de finos modos
Outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
Com carne de obedecer.


Quem te pôs na orelha
Essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
Vai pintá-las de outra cor.


Vai pintar os frutos,
As amoras, os rosais...
Vai pintar de luto,
As papoilas dos trigais.

 

 

 

 

 

 

Soares de Passos (O Canto do Livre)

Ao meu amigo Alexandre Braga.

 

Gema embora a terra inteira
Acurvada a iníquas leis;
Esta fronte sobranceira
Jamais de rojo a vereis.
Oh! ninguém, ninguém a esmaga,
Que eu sou livre como a vaga,
Que sacode sobre a plaga
O jugo d’altos baixéis.

Liberdade é o mote escrito
No céu, na terra, e no mar!
Di-lo a fera no seu grito,
E as aves cruzando o ar;
Di-lo o vento da procela,
A vaga que se encapela,
E nos espaços a estrela
Em seu contínuo girar.

Di-lo tudo! mas ainda
Mais livre me criou Deus
Que os astros da altura infinda,
Os ventos, e os escarcéus.
Eu tenho mais liberdade
Desta alma na imensidade,
Pois tenho nela a vontade,
Tenho a razão, luz dos céus.

Eu sou livre! erguendo a fronte
Diz-mo uma voz na amplidão,
Quando de pé sobre o monte
Me elevo rei da soidão;
Quando além do firmamento
Alçando meu pensamento,
Solto nas asas do vento
Meu canto d’inspiração.

Eu sou livre! eis minha crença,
Nem força contra ela vale.
Que um tirano enfim me vença –
Triunfarei por seu mal.
Triunfarei, que algemado
E diante dele arrastado,
Sou livre! será meu brado
Té ao momento final.

E que importa que o tirano,
Jurando vingança atroz,
Faça erguer, sorrindo ufano,
Um cutelo à sua voz?
Minha fronte sempre erguida
Há-de encará-lo atrevida,
E só cair abatida
Ao rolar aos pés do algoz.

Mas nunca! pois fora um preito
Dar os pulsos ao grilhão.
Tenho um ferro, e neste peito
Tenho um livre coração!
Não! jamais serei cativo!
Se vencido restar vivo,
Cairei, sorrindo altivo,
Sob o punhal de Catão!

 

A negrito e a itálico, a parte do poema que Fernando Lopes Graça, usa na sua heroica, o “Canto do Livre”

domingo, 15 de agosto de 2021

O CÃO, rafeiro, DO MEU VIZINHO

 

O CÃO, rafeiro, DO MEU VIZINHO

 15 de maio de 2010

 

Vivo nesta  “Quinta” há cerca  de vinte anos. Há p’ra aí uma década um dos vizinhos do prédio da Praceta tinha um possante e meigo cão. Era o FRED. Branco com muito pelo, que o dono tratava frequentemente , escovando e deitando os pêlos que se soltavam directamente para o MOLOT. Nessa altura o FRED convivia com o JASPAR, curiosamente do mesmo prédio. O JASPAR, esse foi-se embora, porque a dona divorciou-se e vendeu o andar. Sei-o, porque a senhora da limpeza, que vinha cá apenas uma vez por semana, e apesar de eu a ir buscar de carro e levar, conseguiu justificar-me a ausência do JASPAR. Coisas de uma “velha” tecnologia: dar-à-língua…

 

Quanto ao FRED, aproximava-se sempre de mim quando eu chegava de carro, e acompanhava-me até à porta de casa, Não gostava que lhe passasse a mão pelo pêlo. Creio que não me escoltava, mas precisava  que eu o defende-se contra algo inesperado.

 

O FRED, já estava tão velho que as patas traseiras tremiam quando ele se imobilizava.

 

Deixei há muito meses de ver o FRED, mas só esta semana o seu dono me explicou o tinha abatido por velhice e para pôr fim ao seu sofrimento.

 

Interpelei o dono do FRED para me queixar do seu novo cão rafeiro.

 

- Ah! o DOMINGO’S

- Como?

- DOMINGO’S, porque inicialmente ele só aparecia aqui aos Domingos e tal como no FRED gosto de inglesar o nome dos meus cães.

- Pois, felizmente, sou DOMINGUES, senão nunca saberia se estava a chamar por mim ou não.

 

Aproveitei então para me queixar do rafeiro DOMINGO’S, quando há meia dúzia de anos foi-se impondo como o cão autoritário desta “quinta”. Sempre teve a mania de acompanhar todos os vizinhos que vinham passear os seus cães e fazer de “segurança”, correndo a ladrar num raio de 200 m. Tem, ainda a mania, de correr e a ladrar a tudo quanto circula com sacas na mão, ou pastas como é o meu caso. Já lhe disse que sou TOC e tenho uma pasta, um portátil, mas ele não me entende. Ladra na mesma.( quem me manda a mim falar com cães?)

 

Recentemente cravou os dentes na traseira da minha sapatilha, numa tentativa de me ferrar os calcanhares.

 

O dono -  recentemente adoptado formalmente, por vagatura da “casota”,  lá me garantiu que ele tinha  a vacina contra a RAIVA, e que de facto não passava disso: LADRAVA muito mas não fazia mal a ninguém.

 

Pois, mas insisti, eu. LADRA demais e não me deixa TRABALHAR em sossego, nem circular livremente, sem que me venha LADRAR.

 

Chamou-me à atenção que o seu DOMINGO’S só ladra quando está em serviço, ou seja quando acha que tem que escoltar os outros vizinhos a passear os seus cães, mas quando está sozinho, nem se mexe.

 

- Lá isso é verdade, já pude confirmar várias vezes!

 

Mas insiste com o dono do DOMINGO’S, então como justifica que ao vizinho da vivenda da 1ª banda, ele nunca o incomode, com pastas, sacos, etc, será que é por ser Engenheiro e eu não ser Doutor? ( Bem Engenheiro, também é mania, porque eu sei que ele apenas tem o curso Técnico da Infante D. Henrique - actual secundária -, mas insiste que lhe chamem Engenheiro…Manias.)

 

E não é o único, porque conheço, que ainda tem a mania que é  médico. È assim, ele estava no 1º ano de medicina, mas nunca passou. Embora, durante muitos  anos, vestia uma bata branca e ia fazer “urgências” com os ex-colegas ao S. JOÂO. Até a namorada/secretária enganava. Como trabalhávamos no mesmo andar, na semana a seguir a um Natal, estava com  ela a explicar-me que o sogro que tinha ido levar-lhe um Bolo-REI à urgência na Noite de Natal. Com o meu sorrisinho matreiro perguntei-lhe:

- Que cena, Zé, estavas doente?

E não é que numa escritura teve direito a ter o “DR” antes do nome.

 

Mas voltando ao rafeiro DOMINGO’S, se calhar é elitista e não ladra a engenheiros, só a plebeus como eu.