Reflexão profissional, sobre momentos e casos que, se não se passaram, podiam ter acontecido, fruto de delírios do autor, pelo que qualquer semelhança com alguma situação real, será obviamente mera coincidência e é abusiva a sua colagem.
Parte primeira
- Oh Fonseca, veja lá nas
finanças o que se passa com o reembolso do meu IRS!
- Quando envolve mais-valias, Sr.
Dias da Cruz, vai sempre para analisar. O seu caso é muito complexo … e, em ano
de pandemia, com os serviços confinados é um problema!
- Você é que tem que resolver,
não é o guarda-livros da empresa?
Amaro Sá Fonseca já tinha perdido
a conta às humilhações do seu patrão Dias da Cruz, desde que há 30 anos tinha
ido trabalhar, às tardes, para a sua empresa. Covarde como era, nunca lhe tinha
feito frente, pois a dependência económica a isso o obrigava.
Faltava-lhe a destreza de outros
colegas de profissão, que se aventuravam a abrir gabinetes. Muito perto da reforma,
só sonhava com o dia em que largava tudo, sobretudo agora em que percebia cada
vez menos desta enorme trapalhada para onde está a caminhar a profissão.
Vamos de cavalo para burro, era o
que pensava com os seus botões quando ia às quartas-livres que a Ordem
organizava.
Durante o confinamento continuou
a ir todas as tardes à empresa, apesar de diabético e hipertenso. A Direcção
Geral de Saúde tinha afirmado que os contabilistas não estavam impedidos de
trabalhar e o Dias da Cruz foi intolerante. Embora, ele próprio tivesse ficado
em casa, quase até meado de Maio, pois sempre entendeu que patrão que é patrão
pode e manda.
Tinha ido consultar a declaração
do patrão e verificou que tinha sido seleccionada para analise, o que era
normal nestes casos, havendo razões de sobra como aquela. Porém, como era hábito
do fisco, quando se consultava as divergências aparecia o vocábulo “Irregularidade” e o convite a apresentar uma
declaração de substituição.
Enviou a escritura da venda e a
da partilha. Porém, esta era tão longa e complexa que duvidou que, sem uma
explicação presencial, eles dessem conta do recado.
Conseguiu agendar um atendimento.
Todavia, face à enorme procura, só havia disponibilidade na terceira semana de
Outubro. Em alternativa, podia, se quisesse - a linguagem habitual do fisco -
ser atendido em Vila Franca de Xira, na semana seguinte, pelas 15 horas. Dias
da Cruz, contrariado, lá o autorizou.
Sem carta de condução, Amaro foi
de comboio. Levou máscara e escolheu a carruagem com menos gente, pois a hora
do almoço a isso se proporcionava.
À hora marcada, uma simpática funcionária deu
uma olhadela aos documentos e à explicação de Amaro. Confirmou que havia
necessidade de conferir e validar as quotas-partes de cada herdeiro, mas, no
caso concreto daquele sujeito passivo não podia, com muita pena, dar
seguimento, uma vez que só o serviço da área de residência tinha permissão para
sanar a divergência e a irregularidade. Gentil, qualidade rara que se realça, pegou
no telefone e conseguiu que o colega do Seixal recebesse o reencaminhamento
deste sujeito passivo para a sexta-feira seguinte pelas 11 horas. O humilde
Amaro agradeceu a amabilidade e iniciou a viagem de regresso.
Amaro tinha sempre o cuidado de
tratar as coisas com tempo e, sobretudo, procurar ajuda quando precisava dela, muito
antes dos prazos. Em Setembro do ano anterior, quando Dias da Cruz lhe
perguntou quanto iria pagar das mais-valias da venda de um imóvel da família,
pediu-lhe a escritura de venda e a das partilhas.
- Para que quer tanta coisa,
Fonseca?
- Para calcular a sua quota-parte
da herança e as datas.
- Isso não pode ficar para o ano?
- Então, como quer que eu lhe
diga quanto vai pagar?
A partilha era um bico-de-obra,
tinha quase 20 páginas, pois há 3 gerações que ninguém partilhava nada e, ainda
por cima, os netos tinham os nomes dos avós direitinhos. Pegou nas escrituras e
foi a serviço de Finanças que atende só para esclarecimentos. Um já tinha
fechado e o do Porto ia pelo mesmo caminho.
Por sorte, foi atendido pela Drª
Conceição que, felizmente, tinha voltado ao serviço depois do luto pela morte
do marido.
- Vocês vêm para cá com isto, só
me sabem dar trabalho! E continuou com a lengalenga, resmungou, resmungou, mas lá foi lendo.
Amaro lá lhe foi dizendo que
tinha sugerido ao patrão que os herdeiros pedissem ajuda a um advogado ou
solicitador para fazerem um mapa com a identificação da quota-parte de cada um.
A resposta foi, mais uma vez:
- “Isso custa dinheiro e você é
que é o guarda-livros da empresa, não é? Então vire-se homem, vire-se!”
A dada altura, a Drª Conceição
ficou baralhada, no meio de tanto nome igualzinho.
- Deixa ao seu irmão Germano?!
Deus me valha, este agora apareceu aqui como?! Quem é este Germano?!
Um senhor que estava a ser
atendido ao lado, talvez advogado ou colega, levantou-se e sussurrou por cima
do biombo transparente:
- “É uma expressão jurídica!”
A Drª Conceição bateu com a mão
na testa e disse:
- É claro, é germano e eu li Germano,
vocês até nos baralham. - E agradeceu-lhe.
Ora, o irmão germano Dias da
Cruz, herdou, por testamento e em exclusivo, a parte daquele irmão já falecido.
Fixou-se na conversa do senhor do
lado e na amena cavaqueira que estava a ter com a outra Drª que o atendia.
Dizia ela:
- Claro, os germanos são os
filhos do mesmo pai e da mesma mãe. E os irmãos filhos só da mesma mãe?
- Irmãos uterinos.
- E os só da parte do pai?
Ele fez um sorriso maroto e
disse:
- Irmãos consanguíneos, menina.
E riram-se os dois.
Voltou a concentrar-se na Drª
Conceição, enquanto pensava que, pois claro, havia ali meios-irmãos e, por isso,
só não tinha chegado à conclusão que a herança só para ele, por ter sido deixada em testamento
do irmão, e afinal que quota- parte lhe cabia.
Quase ao fim de hora e meia,
depois de ter entrado a Drª Conceição dava-lhe um mapa da partilha, dizendo:
- Creio que seja isto. Quando entregar a
declaração de rendimentos, eles vão chamá-lo, leve isto e eles que confirmem ou
façam outra leitura.
Agradeceu-lhe muito, como sempre
e saiu. Esteve toda a manhã nas Finanças e por sua conta, porque o Dias da Cruz
jamais o deixava ir perguntar fosse o que fosse durante as tardes.
Foi esse mapa e as cópias das
escrituras que levou consigo, mas não o tinha enviado, nem o deixaria no
serviço de finanças, não fosse a Drª ter problemas com isso.
O Amaro lá apanhou o comboio em Vila Franca de Xira de regresso, agora mais lotado, apesar de estar a meio da
tarde.
Numa das estações entram uns energúmenos
com cruzes suásticas e olhando os passageiros com ar intimidatório. Um deles, mais
ou menos da idade dele, ficou de pé, quase em frente a uma preta de meia-idade,
ajeitando a “sua bagagem”, qual "Rodrigues" dos “Sinais de Fogo” do Jorge de Sena,
que era o abono de família dos meninos ricos do colégio dos padres, tal como
estes o eram para a sobrevivência económica do colégio, caso não fechassem os
olhos aos escândalos que causavam. E quando ele passava junto das barracas, na
Figueira, em calção de banho, as senhoras comentavam: “que aquele está bem
fornecido”.
“Rodrigues” que tinha uma paixão
platónica, desde a adolescência, pela tia do personagem principal, a ponto de
aceitar ir levar o bilhete à mãe dela, por iniciativa do sobrinho e que ela
desconhecia quem o ia levar. Pedia uns 15 contos de réis, sabendo que iria
servir os impulsos sexuais da velha, como fazia com os universitários lá de
Coimbra. Libertinagens dos anos trinta que, afinal, hoje em dia, não são
novidade nenhuma. Mércia Sena, falecida em Abril passado, com 100 anos,
publicou, já depois da morte do marido, em 78, esta obra que, por razões
óbvias, ele nunca se atrevera a publicar durante a ditadura.
Ainda com a mão a aconchegar a
“sua bagagem”, o energúmeno lá ia dizendo umas barbaridades:
- “Quando estive em África fui à
tua mãe e a muitas pretas, putas de merda!”.
“Volta para a tua terra!”.
Ninguém fez um gesto. A preta não
desviava o olhar da janela, até que eles saíram na paragem seguinte. A calma e
o sossego regressaram e Amaro aproveitou para reclamar consigo mesmo.
Então, quem é que foi para a terra “deles” não fomos nós?! Quem os meteu nos
negreiros e os vendeu como escravos não fomos nós?! A construção do poço dos
negros, em Lisboa, não foi ordenada por D. Manuel, para lá se deitarem os
corpos dos escravos, que começavam a trazer para Lisboa, que, como não eram
batizados, não podiam ser sepultados nas igrejas?! Quem fez os massacres de em
S. Tomé, Guiné e Angola, antes da guerra colonial começar?! Quem fazia os
pretos abrir uma cova e no fim dava-lhes com um pau ou um tiro e era só
cobri-los com a terra?!
Sim, não era geral e até havia
cenas piores na Rodésia, na África do Sul e nos Estados Unidos, com a segregação
racial, mas se eles andam por cá, fomos nós que os fomos desinquietar primeiro.
A viagem continuava e ele
regressou aos seus problemas da profissão.
O totalitarismo ideológico do
fisco, qual espécie de planta não indígena, comumente conhecida como exótica
invasora, tem vindo a ocupar o espaço da contabilidade, asfixiando-a.
Tinha acompanhado todas as
sessões sobre o SAF-T da contabilidade, promovidas por diversas entidades.
Quando ouviu falar numas sessões em ambiente de trabalho, inscreveu-se.
Foi agendada para a segunda
quinzena de Julho do ano passado. Nessa altura, estava o parlamento a estudar
alterações ao que estava previsto. Ouviu a audição parlamentar do secretário de
estado, da bastonária e de uma dúzia de colegas que, também, lá foram. Nessa
altura, havia uma proposta do PCP e o PSD ameaçava votá-la.
Eram para ser dois colegas, mas
só um pode comparecer. Muito simpático e honesto, diga-se, rapidamente verificou
que o programa, embora não tivesse a regra SVAT, estava à altura de tudo o
resto. A conversa não saía daquilo que o Amaro já sabia, nem sequer a
“novidade” de não ser obrigatório lançar as facturas do restaurante, uma a uma,
nem a dos combustíveis. Um ano antes, numa quarta-livre, um dos formadores de
renome, perante as intervenções de colegas que diziam que não iam perder tempo
com isso, logo lhes atirou com o papão, ao garantir que, se não o fizessem, o
fisco iria rever a liquidação do imposto pela via de métodos indirectos.
A interessante conversa sobre o
tema revelava que o simpático formador até lhe dava razão nas inquietações que
ele tinha.
- Sabe - dizia-lhe - eu aqui não
tenho grande quantidade, nem de uma nem de outras. No caso dos combustíveis
usam os cartões da gasolineira e é raro ter um, mas, na restauração, o que lhe
davam eram de valores significativos e tinha, até, optado por ter conta
corrente para isso, embora pudesse usar um registo de terceiros.
Claro que não lhe disse que o
patrão lhe dava facturas datadas de “domingos ou feriados”, de valores a rondar
os 200 euros e, também, não disse que era usual entregar-lhe despesas de um alojamento
local em Moledo do Minho, com data de Agosto, no valor de quase três mil euros ou
pacotes turísticos para locais paradisíacos de valores semelhantes, com que
passou a gratificar os colaboradores, em vez das gratificações de balanço como
era prática, sabendo que há mais de vinte anos os salários não são revistos,
com a justificação que a empresa pode fechar amanhã. A ideia tinha sido do
contabilista do Sampaio, grande amigo do Dias da Cruz, que ele lhe impôs no
meio de grandes discussões, humilhações e enxovalhos, e até ameaças de
despedimento, quando Amaro tentava dizer-lhe que isso eram remunerações em
espécie e deviam ser tributadas em IRS.
- Deviam, disse muito bem
Fonseca, mas se o contabilista do Sampaio faz assim, você também faz! Estamos
entendidos?
Logo no início que foi para lá,
recorda-se de dois ou três casos de grandes discussões com ele e como outro
sócio, embora já não abrisse o pio de há uns anos a esta parte.
Certa vez, foi com uns três mil
contos, certinhos, para obras, factura dos últimos dias de Dezembro.
- Diga à Sara que passe um cheque a essa
empresa do valor do IVA e de mais 10%. O restante num outro um cheque, para
mim.
- Que obras pode justificar e o
quê, se aqui só diz obras e, ainda por cima, já tinha feito uma igual há um
ano? Questionou o Amaro .
- Então, diz-se que foi a
envernizar as madeiras. E Fonseca, o contabilista do Sampaio é que me arranjas
estas coisas. Você é que tinha obrigação de andar à procura, não era ele.
- Oh Sr. Dias da Cruz, ao menos
passe o cheque pela totalidade à empresa e ela que lhe devolva a sua parte.
- Era o que mais faltava, diga à
Sara que faça o cheque ao portador, eu levanto e passo-lhe um dos meus.
Suspirou. Ao menos ele não ficava
tão exposto. Numa outra ocasião, queria comprar um carro para oferecer a um dos
administradores de uma sociedade anónima e que era responsável por altas transacções
comerciais. Bem lhe disse que uma oferta, para ser custo aceite fiscalmente,
tinha que ser registada como oferta na outra sociedade e como aquilo era para
ser para um administrador era embaraçoso para ele.
- Então faz-se um ALD!
- Oh Sr. Dias da Cruz, já viu se
o homem tem um acidente e toda a gente fica a saber que anda com o carro desta
empresa?! Não se lembra do acidente do Paulo Portas, com o jaguar da Moderna?!
- E aconteceu-lhe alguma coisa
por isso?
- Oh Sr. Dias da Cruz, mas trata-se
de uma sociedade anónima. Se lhe quiser dar um carro, dê-lhe do seu bolso! E,
mesmo assim, o administrador pode vir a ter problemas com a sociedade!
O contabilista do Sampaio
deve-lhe ter arranjado uma solução, de certeza! Porque nunca mais falou do
assunto.
Das muitas discussões, ainda
houve uma sobre a factura de publicidade estática num estádio de um pequeno
grupo de futebol. Claro está, com data de Dezembro.
- Sr. Dias da Cruz, ao menos
façam um contrato a dizer que é de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro e com
pagamento no último mês.
O Cavaco tinha feito a reforma do
imposto sobre o rendimento e a figura do técnico de contas tinha desaparecido e,
por isso, todo este tipo de coisas, ou piores, aconteciam com frequência. Certo
dia, mais uma vez enaltecendo a enorme inteligência do contabilista do amigo Sampaio,
contou-lhe que quando uma das empresas estava a ir para falência, ele o tinha instigado
a divorciar-se e, na partilha, tudo ficava para a mulher. Assim, os credores,
especialmente a banca, não tinham onde pegar. Vai daí, fez também, a doação das quotas
aos filhos. Tudo por sugestão do contabilista do Sampaio. Aquilo é que era, comigo
nem me avisava.
Lembrou-lhe que isso era falta de
ética do colega e que, para cúmulo, gorava as espectativas dos credores.
- E depois Fonseca, perdia tudo?!
Consigo não posso contar eu.
Que falta que fazia, na altura,
uma câmara ou uma ordem profissional, para que os dirigentes fizessem o apelo à
ética … dando como exemplo O SEU PRÓPRIO EXEMPLO! Que falta fazia! Que falta, lamentava o Amaro.
Claro que não disse nada disto ao
colega, até porque, com os anos, as coisas deixaram de ter esta gravidade. Eram
outras gravidades, mais fracas, mas que o eram. Ainda ficou entusiasmado com a
ideia de, indo estas coisas no SAF-T, podia ser que o patrão se assustasse ou o
fisco pedisse para ver essas datas e essas despesas. Assim a monte, só numa
acção inspectiva e se estivessem virados para isso.
Disparou, então, ao
colega-formador:
- Se a justificação são as
instruções aos anexos de clientes e fornecedores, que lógica tem excluir esses
detalhes que podem ter valores significativos, nomeadamente a identificação do
fornecedor e a data do documento externo, mas incluir a compra de um tinteiro
na papelaria da esquina?
Desta vez o formador não foi
consultar o manual que trazia e que o ajudava a responder às perguntas mais
frequentes. Limitou-se a encolher os ombros e a concordar com ele, quando Amaro
lhe diz que isso dos anexos será sol de pouca dura, porque o fisco até tem isso
desde 2013 e nos anexos excluem-se facturas tendo em conta a natureza de cada
uma delas e uma coisa não dá com a outra.
- Talvez para apanhar agora os
mais cépticos e daqui a um ano ou dois metem a faca, vai ver, disse-lhe Amaro.
A conversa ia agradável e
simpática, quando Amaro lhe pergunta se tem alguma formação específica de
formador.
- Não tenho! – respondeu.
Participou em 3 ou 4 reuniões
para preparar estas acções. Honesto, disse, ainda, que estava inscrito na Ordem
desde 1997, aproveitando aquela abertura que na altura foi feita, uma vez que
já há alguns anos os exames da então DGCI tinham sido suspensos.
Ao fim de 2 horas, e quando já se
estava a despedir veio ter com ele uma colega, para irem a uma sessão num
gabinete que havia dois andares acima.
Muito sorridente, a colega
espetou-lhe dois beijos na face e apresentou-se:
- O meu nome é Maria Branca Andrade,
mas todos me conhecem por Mizí Andrade, ajeitando a mise, ora com uma mão, ora com a outra,
enquanto se apresentava.
Sim, lembra-se dela quando nas
eleições estava sempre à porta das quarta-livres a distribuir os papéis da
Paula Franco.
- Ai lembra-se mim? Dê cá mais
dois beijinhos colega. Já está inscrito no nosso congresso para Setembro,
colega?
- Não tenciono ir, tem demasiados
assuntos que não vejo qualquer relação com a profissão.
- Não diga isso, vai ver que até
o programa Governo Sombra vai falar de nós!
- Não me entusiasmo com isso.
- Mas às Caldas vai, pode levar a
sua esposa e são só dez euros a cada um.
- Muito obrigado, mas sou viúvo!
- Então está na hora de ir, quem
sabe se não arranja uma colega viúva ou divorciada? E de novo ajeitando a mise ….
- Na hora em que a minha esposa
faleceu com a sua mão na minha, prometi-lhe fidelidade eterna …
- … este nosso colega foi fantástico nas
explicações que lhe deu, não foi? Está satisfeito, não está?
- Sim, ele foi muito simpático e
cordial. Tenham uma boa tarde de trabalho, porque o meu patrão não está a
gostar de eu estar aqui na conversa.
- Não se esqueça, colega, que
temos uma grande equipa na Ordem, rematou a Mizí, antes do Fonseca fechar a
porta.
Sentou-se na secretária e sorriu.
Claro que a conhecia. De quando em vez, fazia umas perguntas à mesa, ora
escritas ora verbais. Francamente, só se lembrava de uma há meia dúzia de
meses.
Tinha levado um papel qualquer e
queria saber como foi calculado o IVA. A formadora, que é um quadro do fisco,
leu linha a linha e disse-lhe: - “ó minha querida, isto está certo!”
- "Desde quando o IVA incide sobre
outros impostos?!," questionou a Mizí, do alto da sua infinita sabedoria.
A frase deixou a técnica a
gaguejar e cá atrás, onde Amaro se sentava, a troca de olhares atónicos provocou
algumas risadas contidas e cabeças abanadas ligeiramente.
Pensou, agora sentado e a
recordar a cena, o que vale é que estes colegas fazem isto como bons
samaritanos e estas formações não devem ter grandes encargos para a instituição
e, por isso mesmo, são de aproveitar.
Felizmente, a viagem terminou e
foi a casa, antes de ir para o trabalho. Por hoje, ficamos por aqui, pensou Amaro!
Parte segunda
De manhã, por volta das 9 horas,
lá apanhou o barco para a outra margem. Era sexta-feira e havia pouco
movimento.
Sentou-se num dos bancos junto a
uma janela com a máscara que tinha colocado ao sair de casa, numa zona em que
controlava o espaço e não fosse necessário mudar para um lugar mais seguro. Queria
ver se conseguia visualizar um ou mais golfinhos que começaram a visitar de
novo o Tejo.
Entrou um grupo, com máscaras
vermelhas e com foices e martelos muito pequenos. Os mais jovens, vinham com
camisolas vermelhas com o rosto do Che estampado a preto. Sorriu, lembrava-se
das discussões acaloradas dos “revisas”, como eram conhecidos à época e como
estes consideravam o médico-guerrilheiro um “pequeno-burguês de fachada
socialista”. Um dos seus grandes amigos da escola, que era da LUAR, lá o actualizava
sobre estas discussões, com ele na defesa do Che, pois claro. Se estes jovens
tivessem a memória desses tempos …
Uma “camarada” mais entradote,
com “voz de cabeça”, certamente professora primária, ia dizendo aos outros:
- “camaradas”, agora a Carvalhesa
é assim … com distanciamento “camaradas”, com distanciamento e ria-se a bom rir.
Amaro lera há dias uma declaração do Rui Pato, que foi o grande acompanhador do Zeca Afonso, ambos grandes músicos e ambos sem formação musical, do ponto de vista técnico.
(Quando, há uns anitos, lhe perguntaram como aprendeu a tocar viola, a resposta foi pronta:- Foi com o professor Grundig, levantava a agulha e pousava a agulha!)
Dizia o pneumologista Rui Pato
que a festa era segura, porque o partido comunista é um exímio organizador e
tem muita disciplina.
Amaro pensou para si, oh! Doutor,
tal como você, não sou daquele partido, e também nutro muita simpatia pelo
trabalho que fazem, mas, neste caso, até me parece que vão perder votos, com
tanta insistência em fazer a festa da Atalaia. Será Doutor, que essa garantia é
suficiente?! Será que vai propor ao Santuário de Fátima que contrate o PCP para
fazer com segurança o 13 de Outubro ou ao Vieira para organizar os jogos na luz?!
Claro, sempre com a redução a um terço da capacidade. E sempre cobriam a perda
de receita!
Sim, Amaro também acompanhava a
actividade deles e só uma vez tinha votado na CDU, para a Câmara, quando os
partidos à sua direita se juntaram para lhes tirar a presidência. Achou aquilo
uma badalhoquice política e ajudou-os a ganhar.
Mas, sabia que os comunistas, em
termos da profissão, eram muito activos, a eles se devendo a obrigação do SAF-T
contabilidade ser por Decreto-lei e não por portaria. Sim, a proposta final foi
do PSD, mas se eles não tivessem arriscado e, até, tentado chamar o Decreto-lei
anterior à apreciação parlamentar, aquilo não tinha sido conseguido.
Era ver o PCP a fazer tantas
iniciativas, muitas delas acabando por não passar no parlamento, mas, pelo
menos, tentavam.
Aliás, tal como o CDS, partido igualmente
muito activo nesta área, de quem, aliás, nasceu a obrigação de o fisco disponibilizar
no seu portal da internet as matrizes das declarações fiscais com 120 dias de
antecedência. Mas, como estas coisas não aparecem na comunicação social, ambos
os partidos foram injustamente penalizados nas urnas, embora muito mais o CDS.
Amaro achava isso uma grande injustiça.
Foi do PCP a iniciativa do Justo
Impedimento. Ficou genericamente no Orçamento. E como isso lhe era caro.
Guida, sua esposa, tinha ido
fazer mais uma mamografia de rotina. Por norma, o técnico costumava dizer que
estava tudo normal. Desta vez, era um que lhe pareceu mais sisudo e quando ela
perguntou como estava o exame, ele limitou-se a dizer secamente que o resultado
era enviado ao seu médico, como era normal quando era feito no hospital. Foi à
consulta sozinha, como era habitual. Fonseca chegou a casa e foi encontrá-la no
quarto lavada em lágrimas. O médico disse-lhe que tinha um caroço na mama
esquerda, mas queria fazer uma TAC geral, havia ali uma dúvida. Por precaução, já
na segunda-feira seguinte ia começar um tratamento. Choraram os dois. Fonseca
disse-lhe que mesmo que tivesse que removê-la, seria sempre a sua Guida.
- Nunca pude dar-te filhos como
querias, alguma vez me trocaste? E podias, não podias? Por que havia de te
fazer isso?! Não sejas parva-
Adormeceram agarrados, sem
jantar.
No dia de saber o resultado da
TAC, fez questão de acompanhá-la. O médico disse-lhes que a neoplasia tinha
metastizado e que iam fazer tudo o que estava ao alcance para rapidamente
reverter o seu estado. - Confie no nosso serviço.
A pretexto de dar indicações
sobre tratamento, pediu a Amaro que ficassem a sós porque a esposa não teria
cabeça para estar atenta a tanta recomendação. A sós, Amaro recebeu uma enorme
facada no peito. A sua Guida, a sua querida Guida, não teria mais de 6 meses de
vida.
Chegou a casa e fechou-se na casa
de banho. Chorou. Limpou as lágrimas e foi ter com ela e garantiu-lhe que
demorasse o tempo que demorasse ela iria ficar bem e que estaria sempre a seu
lado. Convenceu o patrão a ir trabalhar de manhã, para poder ir com ela aos
tratamentos.
Ao bater os seis meses, Guida foi
internada em estado grave. Era dia 1. Tinha falado com Dias da Cruz que iria já
fazer o IVA, a Segurança Social e a DMR.
- O IVA não! - respondeu-lhe.
Faltava uma factura que o
fornecedor ainda não lhe tinha feito chegar e não ia pagar o IVA a mais.
- Além disso, Fonseca, ainda
falta muito para o dia 10!
A sua Guida dava o último suspiro
ao final da tarde daquele sábado dia 8, nos cuidados paliativos e de mão segura
na dele.
Segunda-feira, pelas 9 da manhã,
no velório, Dias da Cruz apareceu com ar grave e com um ramo na mão. Deu-lhe um
abraço de circunstância. Pediu-lhe desculpa, mas tinha uma reunião às 16 horas e
não podia estar no funeral. Meteu-lhe na mão a factura em falta. Deu meia volta
e saiu.
Amaro disse aos cunhados que
tinha que ir ao escritório mandar a declaração do IVA que, entretanto, nunca mais
se tinha lembrado. Explicou aos cunhados que ele tinha tentado fazê-la no dia
1, mas o patrão lhe disse que faltava uma factura para deduzir o IVA.
- Não há uma tolerância para
estes casos?! perguntou-lhe a cunhada.
- Haver, há, mas, primeiro, tem
que passar para a fase de contencioso e fica dependente da boa vontade do chefe
do serviço de finanças, como ela faleceu no sábado, é um risco.
- E quanto é a multa?
- Muito mais elevada do que estes
trezentos euros do IVA desta factura.
- Ele que a pague!
- Ele sabe que tenho um seguro da
Ordem. Um dia disse-me que sabia que havia esse seguro, porque um amigo dele, o
Sampaio, que ele idolatrava, não pagou um pagamento especial por conta de IRC e que disse
ao seu contabilista que se quisesse continuar com o cliente que accionasse o
seguro da Ordem. Eram 12.000 euros de coima e, pelos vistos, o meu colega
assumiu, pois, apesar de emitido as guias de pagamento, tinha-se "esquecido" de as
enviar ao cliente, terá argumentado na participação.
- E tu, não o queres accionar?
- Não, por razões de ética, ainda
por cima quando o erro não era dele e jamais ia assumi-lo como seu.
- Mas, pelo código do trabalho,
isso não era responsabilidade do teu patrão?!
- É, mas como existe o da Ordem,
que também abrange os que estão em contrato de trabalho, é uma guerra inútil
que não quero ter.
- E se ele não está lá, como vai
pagar?
- Deixa sempre o cheque passado
aos correios, com data do último dia. Só quer que se vá pagar ao final da
tarde, para o cheque estar mais um dia na conta.
- Somítico!
- A quem o dizes.
- Amaro, de quanto tempo precisas
homem?
- Meia hora, no máximo.
- Vamos lá. Digam que ele se
sentiu indisposto e foi a casa tomar a medicação.
Nessa hora, Amaro Sá Fonseca rogou pragas ao patrão, ao Fisco e, sobretudo, à Ordem, pois sabia que há meia dúzia de anos tinham sido feitas duas tentativas de fazer entrar o conceito do justo impedimento na lei e eles tinham boicotado e se naquele dia ele teve de abandonar o velório, a eles - somente a todos eles, dirigentes e a toda a estrutura da instituição - o “deve”. Que ardam todos no inferno. Todos eles, frisou.
E se assim pensava há quatro
anos, assim pensa agora. Há um ano que o conceito entrou na lei e há um ano que
está por regular. Havia propostas concretas, mas quiseram fazer tantas flores
por razões de egocentricidade que, segundo a bastonária, o fisco só quer aplicá-lo
à IES e à modelo 22. Claro, se até uns diazinhos para o nojo de cunhados
meteram, estavam à espera de quê?! O sol na eira e a chuva no nabal?!
Nem incluíram a morte do
contabilista. Era um assunto do sujeito passivo, argumentou a bastonária no
parlamento. Amaro, quando ouviu, logo concluiu que isso era a prova de que
nunca tiveram interesse no tema. O Dias da Cruz já há algum tempo que lhe dizia
que devia ter a contabilidade num grande gabinete, como o Sampaio tinha. Se um
dia o contabilista morre, eles têm lá outro para continuar. E, claro, se é
verdade para isso, também o é para o resto, um funeral, uma doença, até para as
férias. Com bom rigor, pensava Amaro, tudo isto deveria ficado no justo
impedimento, e até a morte, mas só para os contabilistas trabalhadores dependentes
ou para os que exercem a profissão de forma isolada, em sociedade ou não. E para quem exerce com outros profissionais, nenhuma destas situações deveriam poder ser
accionadas. As grandes empresas estavam “fritas” se não tivessem outros
profissionais que, em qualquer momento, dessem continuidade ao trabalho em caso
de necessidade. Se o processo declarativo ficasse dependente do uso na "ranhura" do cartão de cidadão, ele queria ver se outros até com a morte não ficavam
preocupados.
O barco atracou e ele foi
sentar-se num banco de jardim a queimar o tempo que faltava para as onze.
Quando chegou a sua vez, entrou e sentou-se numa cadeira presa ao chão, para
impor distância. Um funcionário, visivelmente arrogante e com pouca vontade de
estar ali no atendimento, disparou-lhe:
- O Senhor é que é Mário Luís
Dias da Cruz?
- Muito bom dia para si. Não, eu
sou funcionário dele. Sou o contabilista da empresa.
- Trouxe procuração? Só posso
atendê-lo com uma procuração.
- Pode confirmar na DMR da
empresa, quer o meu número fiscal, quer o dele.
- Sabia que podia apresentar uma
declaração de alterações?
- Se, da vossa análise, se
concluir ser necessário, assim será feito e de acordo com a vossa
interpretação. Se me permite, vou dar-lhe as duas escrituras. Atirou-as para
cima da secretária, de modo a manter o distanciamento.
E lá lhe deu a explicação e o
mapa que a Drª Conceição lhe tinha feito há quase um ano.
Foi ouvindo e verificando os
nomes e a sequência com a ajuda dos sublinhados florescentes, que Amaro teve o
cuidado de fazer. Levantou-se e levando tudo com ele, pronunciou um lacónico “venho
já!”.
Ao fim de uns cinquenta minutos,
regressou. Perguntou se podia tirar fotocópias a tudo, mas Amaro descansou-o, que
eram para deixar, temos outras cópias. Sem lhe agradecer, disse-lhe que, pelo
chefe - talvez não por ele -, a situação ficava regularizada e o reembolso
ficava desbloqueado.
- Desculpe, para ficar
regularizada, isso quer dizer que há alguma irregularidade ou o que fizeram foi
analisar e concluíram que nada havia a regularizar?!
Arregalou-lhe os olhos e
pronunciou pausadamente: - A declaração está agora regularizada!
- Eu sei que é essa linguagem que
utilizam, mas não entendível ao cidadão comum. De qualquer forma, tenha a
continuação de um bom dia, muito obrigado e, por favor, transmita-os, também,
ao seu chefe.
Retirou-se. Ao sair, teve vontade
de tirar a máscara para inspirar profundamente. Vou apanhar o barco, almoçar em
casa e fazer uma sesta, assim pensou Amaro enquanto caminhava.
- O Dias da Cruz que vá a badamerda!
Sussurrou para si.
***
Coro de pais do conservatório de musica do porto, com a participação de 2 dos 3 membros da Ordem dos Contabilistas que por lá andam e que serviu também para uma homenagem ao Senhor Adriano, que faleceu no início de Abril, passado.