Comunidade TOC

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Fóruns de discussão de assuntos profissionais dos Técnicos Oficiais de Contas

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O GUARDA-LIVROS FONSECA

 

  

Reflexão profissional, sobre momentos e casos que, se não se passaram, podiam ter acontecido, fruto de delírios do autor, pelo que qualquer semelhança com alguma situação real, será obviamente mera coincidência e é abusiva a sua colagem.

 

Parte primeira

 

- Oh Fonseca, veja lá nas finanças o que se passa com o reembolso do meu IRS!

- Quando envolve mais-valias, Sr. Dias da Cruz, vai sempre para analisar. O seu caso é muito complexo … e, em ano de pandemia, com os serviços confinados é um problema!

- Você é que tem que resolver, não é o guarda-livros da empresa?

 

Amaro Sá Fonseca já tinha perdido a conta às humilhações do seu patrão Dias da Cruz, desde que há 30 anos tinha ido trabalhar, às tardes, para a sua empresa. Covarde como era, nunca lhe tinha feito frente, pois a dependência económica a isso o obrigava.

Faltava-lhe a destreza de outros colegas de profissão, que se aventuravam a abrir gabinetes. Muito perto da reforma, só sonhava com o dia em que largava tudo, sobretudo agora em que percebia cada vez menos desta enorme trapalhada para onde está a caminhar a profissão.

Vamos de cavalo para burro, era o que pensava com os seus botões quando ia às quartas-livres que a Ordem organizava.

Durante o confinamento continuou a ir todas as tardes à empresa, apesar de diabético e hipertenso. A Direcção Geral de Saúde tinha afirmado que os contabilistas não estavam impedidos de trabalhar e o Dias da Cruz foi intolerante. Embora, ele próprio tivesse ficado em casa, quase até meado de Maio, pois sempre entendeu que patrão que é patrão pode e manda.

Tinha ido consultar a declaração do patrão e verificou que tinha sido seleccionada para analise, o que era normal nestes casos, havendo razões de sobra como aquela. Porém, como era hábito do fisco, quando se consultava as divergências aparecia o vocábulo  “Irregularidade” e o convite a apresentar uma declaração de substituição.

Enviou a escritura da venda e a da partilha. Porém, esta era tão longa e complexa que duvidou que, sem uma explicação presencial, eles dessem conta do recado.

Conseguiu agendar um atendimento. Todavia, face à enorme procura, só havia disponibilidade na terceira semana de Outubro. Em alternativa, podia, se quisesse - a linguagem habitual do fisco - ser atendido em Vila Franca de Xira, na semana seguinte, pelas 15 horas. Dias da Cruz, contrariado, lá o autorizou.

Sem carta de condução, Amaro foi de comboio. Levou máscara e escolheu a carruagem com menos gente, pois a hora do almoço a isso se proporcionava.

À hora marcada, uma simpática funcionária deu uma olhadela aos documentos e à explicação de Amaro. Confirmou que havia necessidade de conferir e validar as quotas-partes de cada herdeiro, mas, no caso concreto daquele sujeito passivo não podia, com muita pena, dar seguimento, uma vez que só o serviço da área de residência tinha permissão para sanar a divergência e a irregularidade. Gentil, qualidade rara que se realça, pegou no telefone e conseguiu que o colega do Seixal recebesse o reencaminhamento deste sujeito passivo para a sexta-feira seguinte pelas 11 horas. O humilde Amaro agradeceu a amabilidade e iniciou a viagem de regresso.

 

Amaro tinha sempre o cuidado de tratar as coisas com tempo e, sobretudo, procurar ajuda quando precisava dela, muito antes dos prazos. Em Setembro do ano anterior, quando Dias da Cruz lhe perguntou quanto iria pagar das mais-valias da venda de um imóvel da família, pediu-lhe a escritura de venda e a das partilhas.

- Para que quer tanta coisa, Fonseca?

- Para calcular a sua quota-parte da herança e as datas.

- Isso não pode ficar para o ano?

- Então, como quer que eu lhe diga quanto vai pagar?

A partilha era um bico-de-obra, tinha quase 20 páginas, pois há 3 gerações que ninguém partilhava nada e, ainda por cima, os netos tinham os nomes dos avós direitinhos. Pegou nas escrituras e foi a serviço de Finanças que atende só para esclarecimentos. Um já tinha fechado e o do Porto ia pelo mesmo caminho.

Por sorte, foi atendido pela Drª Conceição que, felizmente, tinha voltado ao serviço depois do luto pela morte do marido.

- Vocês vêm para cá com isto, só me sabem dar trabalho! E continuou com a lengalenga,  resmungou, resmungou, mas lá foi lendo.

Amaro lá lhe foi dizendo que tinha sugerido ao patrão que os herdeiros pedissem ajuda a um advogado ou solicitador para fazerem um mapa com a identificação da quota-parte de cada um. A resposta foi, mais uma vez:

- “Isso custa dinheiro e você é que é o guarda-livros da empresa, não é? Então vire-se homem, vire-se!”

A dada altura, a Drª Conceição ficou baralhada, no meio de tanto nome igualzinho.

- Deixa ao seu irmão Germano?! Deus me valha, este agora apareceu aqui como?! Quem é este Germano?!

Um senhor que estava a ser atendido ao lado, talvez advogado ou colega, levantou-se e sussurrou por cima do biombo transparente:

- “É uma expressão jurídica!”

A Drª Conceição bateu com a mão na testa e disse:

- É claro, é germano e eu li Germano, vocês até nos baralham. - E agradeceu-lhe.

Ora, o irmão germano Dias da Cruz, herdou, por testamento e em exclusivo, a parte daquele irmão já falecido.

Fixou-se na conversa do senhor do lado e na amena cavaqueira que estava a ter com a outra Drª que o atendia. Dizia ela:

- Claro, os germanos são os filhos do mesmo pai e da mesma mãe. E os irmãos filhos só da mesma mãe?

- Irmãos uterinos.

- E os só da parte do pai?

Ele fez um sorriso maroto e disse:

- Irmãos consanguíneos, menina.

E riram-se os dois.

Voltou a concentrar-se na Drª Conceição, enquanto pensava que, pois claro, havia ali meios-irmãos e, por isso, só não tinha chegado à conclusão que a herança só para ele, por ter sido deixada em testamento do irmão, e afinal que quota- parte lhe cabia.

Quase ao fim de hora e meia, depois de ter entrado a Drª Conceição dava-lhe um mapa da partilha, dizendo:

 - Creio que seja isto. Quando entregar a declaração de rendimentos, eles vão chamá-lo, leve isto e eles que confirmem ou façam outra leitura.

Agradeceu-lhe muito, como sempre e saiu. Esteve toda a manhã nas Finanças e por sua conta, porque o Dias da Cruz jamais o deixava ir perguntar fosse o que fosse durante as tardes.

Foi esse mapa e as cópias das escrituras que levou consigo, mas não o tinha enviado, nem o deixaria no serviço de finanças, não fosse a Drª ter problemas com isso.

 

O Amaro lá apanhou o comboio em Vila Franca de Xira de regresso, agora mais lotado, apesar de estar a meio da tarde.

Numa das estações entram uns energúmenos com cruzes suásticas e olhando os passageiros com ar intimidatório. Um deles, mais ou menos da idade dele, ficou de pé, quase em frente a uma preta de meia-idade, ajeitando a “sua bagagem”, qual "Rodrigues" dos “Sinais de Fogo” do Jorge de Sena, que era o abono de família dos meninos ricos do colégio dos padres, tal como estes o eram para a sobrevivência económica do colégio, caso não fechassem os olhos aos escândalos que causavam. E quando ele passava junto das barracas, na Figueira, em calção de banho, as senhoras comentavam: “que aquele está bem fornecido”.

“Rodrigues” que tinha uma paixão platónica, desde a adolescência, pela tia do personagem principal, a ponto de aceitar ir levar o bilhete à mãe dela, por iniciativa do sobrinho e que ela desconhecia quem o ia levar. Pedia uns 15 contos de réis, sabendo que iria servir os impulsos sexuais da velha, como fazia com os universitários lá de Coimbra. Libertinagens dos anos trinta que, afinal, hoje em dia, não são novidade nenhuma. Mércia Sena, falecida em Abril passado, com 100 anos, publicou, já depois da morte do marido, em 78, esta obra que, por razões óbvias, ele nunca se atrevera a publicar durante a ditadura.

Ainda com a mão a aconchegar a “sua bagagem”, o energúmeno lá ia dizendo umas barbaridades:

- “Quando estive em África fui à tua mãe e a muitas pretas, putas de merda!”.
“Volta para a tua terra!”.

Ninguém fez um gesto. A preta não desviava o olhar da janela, até que eles saíram na paragem seguinte. A calma e o sossego regressaram e Amaro aproveitou para reclamar consigo mesmo.
Então, quem é que foi para a terra “deles” não fomos nós?! Quem os meteu nos negreiros e os vendeu como escravos não fomos nós?! A construção do poço dos negros, em Lisboa, não foi ordenada por D. Manuel, para lá se deitarem os corpos dos escravos, que começavam a trazer para Lisboa, que, como não eram batizados, não podiam ser sepultados nas igrejas?! Quem fez os massacres de em S. Tomé, Guiné e Angola, antes da guerra colonial começar?! Quem fazia os pretos abrir uma cova e no fim dava-lhes com um pau ou um tiro e era só cobri-los com a terra?!

Sim, não era geral e até havia cenas piores na Rodésia, na África do Sul e nos Estados Unidos, com a segregação racial, mas se eles andam por cá, fomos nós que os fomos desinquietar primeiro.

A viagem continuava e ele regressou aos seus problemas da profissão.

 

O totalitarismo ideológico do fisco, qual espécie de planta não indígena, comumente conhecida como exótica invasora, tem vindo a ocupar o espaço da contabilidade, asfixiando-a.

Tinha acompanhado todas as sessões sobre o SAF-T da contabilidade, promovidas por diversas entidades. Quando ouviu falar numas sessões em ambiente de trabalho, inscreveu-se.

Foi agendada para a segunda quinzena de Julho do ano passado. Nessa altura, estava o parlamento a estudar alterações ao que estava previsto. Ouviu a audição parlamentar do secretário de estado, da bastonária e de uma dúzia de colegas que, também, lá foram. Nessa altura, havia uma proposta do PCP e o PSD ameaçava votá-la.

Eram para ser dois colegas, mas só um pode comparecer. Muito simpático e honesto, diga-se, rapidamente verificou que o programa, embora não tivesse a regra SVAT, estava à altura de tudo o resto. A conversa não saía daquilo que o Amaro já sabia, nem sequer a “novidade” de não ser obrigatório lançar as facturas do restaurante, uma a uma, nem a dos combustíveis. Um ano antes, numa quarta-livre, um dos formadores de renome, perante as intervenções de colegas que diziam que não iam perder tempo com isso, logo lhes atirou com o papão, ao garantir que, se não o fizessem, o fisco iria rever a liquidação do imposto pela via de métodos indirectos.

A interessante conversa sobre o tema revelava que o simpático formador até lhe dava razão nas inquietações que ele tinha.

- Sabe - dizia-lhe - eu aqui não tenho grande quantidade, nem de uma nem de outras. No caso dos combustíveis usam os cartões da gasolineira e é raro ter um, mas, na restauração, o que lhe davam eram de valores significativos e tinha, até, optado por ter conta corrente para isso, embora pudesse usar um registo de terceiros.

Claro que não lhe disse que o patrão lhe dava facturas datadas de “domingos ou feriados”, de valores a rondar os 200 euros e, também, não disse que era usual entregar-lhe despesas de um alojamento local em Moledo do Minho, com data de Agosto, no valor de quase três mil euros ou pacotes turísticos para locais paradisíacos de valores semelhantes, com que passou a gratificar os colaboradores, em vez das gratificações de balanço como era prática, sabendo que há mais de vinte anos os salários não são revistos, com a justificação que a empresa pode fechar amanhã. A ideia tinha sido do contabilista do Sampaio, grande amigo do Dias da Cruz, que ele lhe impôs no meio de grandes discussões, humilhações e enxovalhos, e até ameaças de despedimento, quando Amaro tentava dizer-lhe que isso eram remunerações em espécie e deviam ser tributadas em IRS.

- Deviam, disse muito bem Fonseca, mas se o contabilista do Sampaio faz assim, você também faz! Estamos entendidos?

Logo no início que foi para lá, recorda-se de dois ou três casos de grandes discussões com ele e como outro sócio, embora já não abrisse o pio de há uns anos a esta parte.

Certa vez, foi com uns três mil contos, certinhos, para obras, factura dos últimos dias de Dezembro.

 - Diga à Sara que passe um cheque a essa empresa do valor do IVA e de mais 10%. O restante num outro um cheque, para mim.

- Que obras pode justificar e o quê, se aqui só diz obras e, ainda por cima, já tinha feito uma igual há um ano? Questionou o Amaro .

- Então, diz-se que foi a envernizar as madeiras. E Fonseca, o contabilista do Sampaio é que me arranjas estas coisas. Você é que tinha obrigação de andar à procura, não era ele.

- Oh Sr. Dias da Cruz, ao menos passe o cheque pela totalidade à empresa e ela que lhe devolva a sua parte.

- Era o que mais faltava, diga à Sara que faça o cheque ao portador, eu levanto e passo-lhe um dos meus.

Suspirou. Ao menos ele não ficava tão exposto. Numa outra ocasião, queria comprar um carro para oferecer a um dos administradores de uma sociedade anónima e que era responsável por altas transacções comerciais. Bem lhe disse que uma oferta, para ser custo aceite fiscalmente, tinha que ser registada como oferta na outra sociedade e como aquilo era para ser para um administrador era embaraçoso para ele.

- Então faz-se um ALD!

- Oh Sr. Dias da Cruz, já viu se o homem tem um acidente e toda a gente fica a saber que anda com o carro desta empresa?! Não se lembra do acidente do Paulo Portas, com o jaguar da Moderna?!

- E aconteceu-lhe alguma coisa por isso?

- Oh Sr. Dias da Cruz, mas trata-se de uma sociedade anónima. Se lhe quiser dar um carro, dê-lhe do seu bolso! E, mesmo assim, o administrador pode vir a ter problemas com a sociedade!

O contabilista do Sampaio deve-lhe ter arranjado uma solução, de certeza! Porque nunca mais falou do assunto.

Das muitas discussões, ainda houve uma sobre a factura de publicidade estática num estádio de um pequeno grupo de futebol. Claro está, com data de Dezembro.

- Sr. Dias da Cruz, ao menos façam um contrato a dizer que é de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro e com pagamento no último mês.

O Cavaco tinha feito a reforma do imposto sobre o rendimento e a figura do técnico de contas tinha desaparecido e, por isso, todo este tipo de coisas, ou piores, aconteciam com frequência. Certo dia, mais uma vez enaltecendo a enorme inteligência do contabilista do amigo Sampaio, contou-lhe que quando uma das empresas estava a ir para falência, ele o tinha instigado a divorciar-se e, na partilha, tudo ficava para a mulher. Assim, os credores, especialmente a banca, não tinham onde pegar. Vai daí, fez também, a doação das quotas aos filhos. Tudo por sugestão do contabilista do Sampaio. Aquilo é que era, comigo nem me avisava.

Lembrou-lhe que isso era falta de ética do colega e que, para cúmulo, gorava as espectativas dos credores.

- E depois Fonseca, perdia tudo?! Consigo não posso contar eu.

Que falta que fazia, na altura, uma câmara ou uma ordem profissional, para que os dirigentes fizessem o apelo à ética …  dando como exemplo O SEU PRÓPRIO EXEMPLO! Que falta fazia! Que falta, lamentava o Amaro.

 

Claro que não disse nada disto ao colega, até porque, com os anos, as coisas deixaram de ter esta gravidade. Eram outras gravidades, mais fracas, mas que o eram. Ainda ficou entusiasmado com a ideia de, indo estas coisas no SAF-T, podia ser que o patrão se assustasse ou o fisco pedisse para ver essas datas e essas despesas. Assim a monte, só numa acção inspectiva e se estivessem virados para isso.

Disparou, então, ao colega-formador:

- Se a justificação são as instruções aos anexos de clientes e fornecedores, que lógica tem excluir esses detalhes que podem ter valores significativos, nomeadamente a identificação do fornecedor e a data do documento externo, mas incluir a compra de um tinteiro na papelaria da esquina?

Desta vez o formador não foi consultar o manual que trazia e que o ajudava a responder às perguntas mais frequentes. Limitou-se a encolher os ombros e a concordar com ele, quando Amaro lhe diz que isso dos anexos será sol de pouca dura, porque o fisco até tem isso desde 2013 e nos anexos excluem-se facturas tendo em conta a natureza de cada uma delas e uma coisa não dá com a outra.

- Talvez para apanhar agora os mais cépticos e daqui a um ano ou dois metem a faca, vai ver, disse-lhe Amaro.

A conversa ia agradável e simpática, quando Amaro lhe pergunta se tem alguma formação específica de formador.

- Não tenho! – respondeu.

Participou em 3 ou 4 reuniões para preparar estas acções. Honesto, disse, ainda, que estava inscrito na Ordem desde 1997, aproveitando aquela abertura que na altura foi feita, uma vez que já há alguns anos os exames da então DGCI tinham sido suspensos.

Ao fim de 2 horas, e quando já se estava a despedir veio ter com ele uma colega, para irem a uma sessão num gabinete que havia dois andares acima.

Muito sorridente, a colega espetou-lhe dois beijos na face e apresentou-se:

- O meu nome é Maria Branca Andrade, mas todos me conhecem por Mizí Andrade, ajeitando  a mise, ora com uma mão, ora com a outra, enquanto se apresentava.

Sim, lembra-se dela quando nas eleições estava sempre à porta das quarta-livres a distribuir os papéis da Paula Franco.

- Ai lembra-se mim? Dê cá mais dois beijinhos colega. Já está inscrito no nosso congresso para Setembro, colega?

- Não tenciono ir, tem demasiados assuntos que não vejo qualquer relação com a profissão.

- Não diga isso, vai ver que até o programa Governo Sombra vai falar de nós!

- Não me entusiasmo com isso.

- Mas às Caldas vai, pode levar a sua esposa e são só dez euros a cada um.

- Muito obrigado, mas sou viúvo!

- Então está na hora de ir, quem sabe se não arranja uma colega viúva ou divorciada? E de novo ajeitando a mise ….

- Na hora em que a minha esposa faleceu com a sua mão na minha, prometi-lhe fidelidade eterna …

- …  este nosso colega foi fantástico nas explicações que lhe deu, não foi? Está satisfeito, não está?

- Sim, ele foi muito simpático e cordial. Tenham uma boa tarde de trabalho, porque o meu patrão não está a gostar de eu estar aqui na conversa.

- Não se esqueça, colega, que temos uma grande equipa na Ordem, rematou a Mizí, antes do Fonseca fechar a porta.

Sentou-se na secretária e sorriu. Claro que a conhecia. De quando em vez, fazia umas perguntas à mesa, ora escritas ora verbais. Francamente, só se lembrava de uma há meia dúzia de meses.

Tinha levado um papel qualquer e queria saber como foi calculado o IVA. A formadora, que é um quadro do fisco, leu linha a linha e disse-lhe: - “ó minha querida, isto está certo!”

- "Desde quando o IVA incide sobre outros impostos?!," questionou a Mizí, do alto da sua infinita sabedoria.

A frase deixou a técnica a gaguejar e cá atrás, onde Amaro se sentava, a troca de olhares atónicos provocou algumas risadas contidas e cabeças abanadas ligeiramente.

Pensou, agora sentado e a recordar a cena, o que vale é que estes colegas fazem isto como bons samaritanos e estas formações não devem ter grandes encargos para a instituição e, por isso mesmo, são de aproveitar.

Felizmente, a viagem terminou e foi a casa, antes de ir para o trabalho. Por hoje, ficamos por aqui, pensou Amaro!

 

 

 

 

Parte segunda

 

De manhã, por volta das 9 horas, lá apanhou o barco para a outra margem. Era sexta-feira e havia pouco movimento.

Sentou-se num dos bancos junto a uma janela com a máscara que tinha colocado ao sair de casa, numa zona em que controlava o espaço e não fosse necessário mudar para um lugar mais seguro. Queria ver se conseguia visualizar um ou mais golfinhos que começaram a visitar de novo o Tejo.

Entrou um grupo, com máscaras vermelhas e com foices e martelos muito pequenos. Os mais jovens, vinham com camisolas vermelhas com o rosto do Che estampado a preto. Sorriu, lembrava-se das discussões acaloradas dos “revisas”, como eram conhecidos à época e como estes consideravam o médico-guerrilheiro um “pequeno-burguês de fachada socialista”. Um dos seus grandes amigos da escola, que era da LUAR, lá o actualizava sobre estas discussões, com ele na defesa do Che, pois claro. Se estes jovens tivessem a memória desses tempos …

Uma “camarada” mais entradote, com “voz de cabeça”, certamente professora primária, ia dizendo aos outros:

- “camaradas”, agora a Carvalhesa é assim … com distanciamento “camaradas”, com distanciamento e ria-se a bom rir.

Amaro lera há dias uma declaração do Rui Pato, que foi o grande acompanhador do Zeca Afonso, ambos grandes músicos e ambos sem formação musical, do ponto de vista técnico. 

(Quando, há uns anitos, lhe perguntaram como aprendeu a tocar viola, a resposta foi pronta:- Foi com o professor Grundig, levantava a agulha e pousava a agulha!)

Dizia o pneumologista Rui Pato que a festa era segura, porque o partido comunista é um exímio organizador e tem muita disciplina.

Amaro pensou para si, oh! Doutor, tal como você, não sou daquele partido, e também nutro muita simpatia pelo trabalho que fazem, mas, neste caso, até me parece que vão perder votos, com tanta insistência em fazer a festa da Atalaia. Será Doutor, que essa garantia é suficiente?! Será que vai propor ao Santuário de Fátima que contrate o PCP para fazer com segurança o 13 de Outubro ou ao Vieira para organizar os jogos na luz?! Claro, sempre com a redução a um terço da capacidade. E sempre cobriam a perda de receita!

Sim, Amaro também acompanhava a actividade deles e só uma vez tinha votado na CDU, para a Câmara, quando os partidos à sua direita se juntaram para lhes tirar a presidência. Achou aquilo uma badalhoquice política e ajudou-os a ganhar.

Mas, sabia que os comunistas, em termos da profissão, eram muito activos, a eles se devendo a obrigação do SAF-T contabilidade ser por Decreto-lei e não por portaria. Sim, a proposta final foi do PSD, mas se eles não tivessem arriscado e, até, tentado chamar o Decreto-lei anterior à apreciação parlamentar, aquilo não tinha sido conseguido.

Era ver o PCP a fazer tantas iniciativas, muitas delas acabando por não passar no parlamento, mas, pelo menos, tentavam.

Aliás, tal como o CDS, partido igualmente muito activo nesta área, de quem, aliás, nasceu a obrigação de o fisco disponibilizar no seu portal da internet as matrizes das declarações fiscais com 120 dias de antecedência. Mas, como estas coisas não aparecem na comunicação social, ambos os partidos foram injustamente penalizados nas urnas, embora muito mais o CDS. Amaro achava isso uma grande injustiça.

Foi do PCP a iniciativa do Justo Impedimento. Ficou genericamente no Orçamento. E como isso lhe era caro.

 

Guida, sua esposa, tinha ido fazer mais uma mamografia de rotina. Por norma, o técnico costumava dizer que estava tudo normal. Desta vez, era um que lhe pareceu mais sisudo e quando ela perguntou como estava o exame, ele limitou-se a dizer secamente que o resultado era enviado ao seu médico, como era normal quando era feito no hospital. Foi à consulta sozinha, como era habitual. Fonseca chegou a casa e foi encontrá-la no quarto lavada em lágrimas. O médico disse-lhe que tinha um caroço na mama esquerda, mas queria fazer uma TAC geral, havia ali uma dúvida. Por precaução, já na segunda-feira seguinte ia começar um tratamento. Choraram os dois. Fonseca disse-lhe que mesmo que tivesse que removê-la, seria sempre a sua Guida.

- Nunca pude dar-te filhos como querias, alguma vez me trocaste? E podias, não podias? Por que havia de te fazer isso?! Não sejas parva-

Adormeceram agarrados, sem jantar.

No dia de saber o resultado da TAC, fez questão de acompanhá-la. O médico disse-lhes que a neoplasia tinha metastizado e que iam fazer tudo o que estava ao alcance para rapidamente reverter o seu estado. - Confie no nosso serviço.

A pretexto de dar indicações sobre tratamento, pediu a Amaro que ficassem a sós porque a esposa não teria cabeça para estar atenta a tanta recomendação. A sós, Amaro recebeu uma enorme facada no peito. A sua Guida, a sua querida Guida, não teria mais de 6 meses de vida.

Chegou a casa e fechou-se na casa de banho. Chorou. Limpou as lágrimas e foi ter com ela e garantiu-lhe que demorasse o tempo que demorasse ela iria ficar bem e que estaria sempre a seu lado. Convenceu o patrão a ir trabalhar de manhã, para poder ir com ela aos tratamentos.

Ao bater os seis meses, Guida foi internada em estado grave. Era dia 1. Tinha falado com Dias da Cruz que iria já fazer o IVA, a Segurança Social e a DMR.

- O IVA não! - respondeu-lhe.

Faltava uma factura que o fornecedor ainda não lhe tinha feito chegar e não ia pagar o IVA a mais.

- Além disso, Fonseca, ainda falta muito para o dia 10!

A sua Guida dava o último suspiro ao final da tarde daquele sábado dia 8, nos cuidados paliativos e de mão segura na dele.

Segunda-feira, pelas 9 da manhã, no velório, Dias da Cruz apareceu com ar grave e com um ramo na mão. Deu-lhe um abraço de circunstância. Pediu-lhe desculpa, mas tinha uma reunião às 16 horas e não podia estar no funeral. Meteu-lhe na mão a factura em falta. Deu meia volta e saiu.

Amaro disse aos cunhados que tinha que ir ao escritório mandar a declaração do IVA que, entretanto, nunca mais se tinha lembrado. Explicou aos cunhados que ele tinha tentado fazê-la no dia 1, mas o patrão lhe disse que faltava uma factura para deduzir o IVA.

- Não há uma tolerância para estes casos?! perguntou-lhe a cunhada.

- Haver, há, mas, primeiro, tem que passar para a fase de contencioso e fica dependente da boa vontade do chefe do serviço de finanças, como ela faleceu no sábado, é um risco.

- E quanto é a multa?

- Muito mais elevada do que estes trezentos euros do IVA desta factura.

- Ele que a pague!

- Ele sabe que tenho um seguro da Ordem. Um dia disse-me que sabia que havia esse seguro, porque um amigo dele, o Sampaio, que ele idolatrava, não pagou um pagamento especial por conta de IRC e que disse ao seu contabilista que se quisesse continuar com o cliente que accionasse o seguro da Ordem. Eram 12.000 euros de coima e, pelos vistos, o meu colega assumiu, pois, apesar de emitido as guias de pagamento, tinha-se "esquecido" de as enviar ao cliente, terá argumentado na participação.

- E tu, não o queres accionar?

- Não, por razões de ética, ainda por cima quando o erro não era dele e jamais ia assumi-lo como seu.

- Mas, pelo código do trabalho, isso não era responsabilidade do teu patrão?!

- É, mas como existe o da Ordem, que também abrange os que estão em contrato de trabalho, é uma guerra inútil que não quero ter.

- E se ele não está lá, como vai pagar?

- Deixa sempre o cheque passado aos correios, com data do último dia. Só quer que se vá pagar ao final da tarde, para o cheque estar mais um dia na conta.

- Somítico!

- A quem o dizes.

- Amaro, de quanto tempo precisas homem?

- Meia hora, no máximo.

- Vamos lá. Digam que ele se sentiu indisposto e foi a casa tomar a medicação.

Nessa hora, Amaro Sá Fonseca rogou pragas ao patrão, ao Fisco e, sobretudo, à Ordem, pois sabia que há meia dúzia de anos tinham sido feitas duas tentativas de fazer entrar o conceito do justo impedimento na lei e eles tinham boicotado e se naquele dia ele teve de abandonar o velório, a eles - somente a todos eles, dirigentes e a toda a estrutura da instituição - o “deve”. Que ardam todos no inferno. Todos eles, frisou.

E se assim pensava há quatro anos, assim pensa agora. Há um ano que o conceito entrou na lei e há um ano que está por regular. Havia propostas concretas, mas quiseram fazer tantas flores por razões de egocentricidade que, segundo a bastonária, o fisco só quer aplicá-lo à IES e à modelo 22. Claro, se até uns diazinhos para o nojo de cunhados meteram, estavam à espera de quê?! O sol na eira e a chuva no nabal?!

Nem incluíram a morte do contabilista. Era um assunto do sujeito passivo, argumentou a bastonária no parlamento. Amaro, quando ouviu, logo concluiu que isso era a prova de que nunca tiveram interesse no tema. O Dias da Cruz já há algum tempo que lhe dizia que devia ter a contabilidade num grande gabinete, como o Sampaio tinha. Se um dia o contabilista morre, eles têm lá outro para continuar. E, claro, se é verdade para isso, também o é para o resto, um funeral, uma doença, até para as férias. Com bom rigor, pensava Amaro, tudo isto deveria ficado no justo impedimento, e até a morte, mas só para os contabilistas trabalhadores dependentes ou para os que exercem a profissão de forma isolada, em sociedade ou não. E para  quem exerce com outros profissionais, nenhuma destas situações deveriam poder ser accionadas. As grandes empresas estavam “fritas” se não tivessem outros profissionais que, em qualquer momento, dessem continuidade ao trabalho em caso de necessidade. Se o processo declarativo ficasse dependente do uso na "ranhura" do cartão de cidadão, ele queria ver se outros até com a morte não ficavam preocupados.

 

 

O barco atracou e ele foi sentar-se num banco de jardim a queimar o tempo que faltava para as onze. Quando chegou a sua vez, entrou e sentou-se numa cadeira presa ao chão, para impor distância. Um funcionário, visivelmente arrogante e com pouca vontade de estar ali no atendimento, disparou-lhe:

- O Senhor é que é Mário Luís Dias da Cruz?

- Muito bom dia para si. Não, eu sou funcionário dele. Sou o contabilista da empresa.

- Trouxe procuração? Só posso atendê-lo com uma procuração.

- Pode confirmar na DMR da empresa, quer o meu número fiscal, quer o dele.

- Sabia que podia apresentar uma declaração de alterações?

- Se, da vossa análise, se concluir ser necessário, assim será feito e de acordo com a vossa interpretação. Se me permite, vou dar-lhe as duas escrituras. Atirou-as para cima da secretária, de modo a manter o distanciamento.

E lá lhe deu a explicação e o mapa que a Drª Conceição lhe tinha feito há quase um ano.

Foi ouvindo e verificando os nomes e a sequência com a ajuda dos sublinhados florescentes, que Amaro teve o cuidado de fazer. Levantou-se e levando tudo com ele, pronunciou um lacónico “venho já!”.

Ao fim de uns cinquenta minutos, regressou. Perguntou se podia tirar fotocópias a tudo, mas Amaro descansou-o, que eram para deixar, temos outras cópias. Sem lhe agradecer, disse-lhe que, pelo chefe - talvez não por ele -, a situação ficava regularizada e o reembolso ficava desbloqueado.

- Desculpe, para ficar regularizada, isso quer dizer que há alguma irregularidade ou o que fizeram foi analisar e concluíram que nada havia a regularizar?!

Arregalou-lhe os olhos e pronunciou pausadamente: - A declaração está agora regularizada!

- Eu sei que é essa linguagem que utilizam, mas não entendível ao cidadão comum. De qualquer forma, tenha a continuação de um bom dia, muito obrigado e, por favor, transmita-os, também, ao seu chefe.

Retirou-se. Ao sair, teve vontade de tirar a máscara para inspirar profundamente. Vou apanhar o barco, almoçar em casa e fazer uma sesta, assim pensou Amaro enquanto caminhava.

- O Dias da Cruz que vá a badamerda! Sussurrou para si.

                                                                       

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Coro de pais do conservatório de musica do porto, com a participação de 2 dos 3 membros da Ordem dos Contabilistas que por lá andam e que serviu também para uma homenagem ao Senhor Adriano, que faleceu no início de Abril, passado.

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