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quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Bispo das Forças Armadas, Januário Torgal Ferreira:

"Vejo pouca gente da Igreja a defender os direitos humanos"
Entrevista ao Jornal de Notícias de 24 de Novembro de 2007
e na Antena 1

Curiosamente esta entrevista não consta nas referências da agência Ecclesia.

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Entrevistas -
MARIA FLOR PEDROSO

D. Januário Torgal Ferreira, depois dos recados do Papa Bento XVI, vem à Antena 1 e antecipa o futuro da Igreja em Portugal. 2007-11-24 48m43s 34.52 Mb


A entrevista no JN:

"Vejo pouca gente da Igreja a defender os direitos humanos"

"Todos os princípios que recebi são de Direita. Só despertei para os ideais de Esquerda aos 20 anos"

O bispo das Forças Armadas, Januário Torgal Ferreira, decidiu que queria ser padre muito cedo, aos sete anos. Entrou no seminário aos 10, de onde só saiu aos 22. Em Maio de 1968 estava em França a estudar filosofia com Paul Ricoeur. Aí viveu tempos intensos de debate social e político, bem como eclesial. Para o prelado, que esteve recentemente em Roma, a Igreja portuguesa tem de mudar. Muito.

JN Antena 1Disse uma vez que uma das tragédias em Portugal era a Igreja ser só da e para a Direita. A Igreja em Portugal não está totalmente aberta?
D. Januário Torgal Ferreira Não, a Igreja em Portugal é totalmente conservadora.

De Direita, portanto.De Direita nesse sentido. Por isso é que o Papa diz que isto tem de dar uma volta. Pois tem. A mentalidade... Por que é que não se fala do desemprego, da violência contra as mulheres, das purgas contra as crianças, da pouca vergonha instalada na Justiça?
Posso perguntar a um bispo se é de Direita ou de Esquerda?
Costumo dizer eu sei como voto. Venho da Direita. Todos os princípios que recebi são de Direita. Só despertei para os ideais de Esquerda, da justiça social, a partir dos meus 20 anos. São os ideais de justiça social, de solidariedade que competem à Igreja. A Igreja tem coisas fantásticas, de amor, de devoção, de entrega. Mas, não tenhamos medo de dizê-lo: vejo pouca gente da Igreja a defender os direitos humanos. Há, mas pouca.
São os silêncios de que tem vindo a falar?Sim. Prefiro a ruptura, a discussão. Espero frontalidade, mas, habitualmente, o que se usa é o truque, a hipocrisia.
Viu luz no que o Papa disse aos bispos?Vi, claro. Ele disse uma coisa muito importante, que é que isto tem que dar uma volta. A Igreja tem de dar uma volta. Também ele, o Papa, em muitas coisas deve dar uma volta.
Que volta? Comecemos pelo Papa antes de falarmos da Igreja portuguesa
.Nós deveríamos ser muito mais escutados por Roma; não deveria haver centralismo. Deveria haver muito mais comunhão. Deveria mudar a apresentação. Deveria haver uma Igreja - não vou advogar que se venda o Vaticano, não sou iconoclasta - diferente na nossa presença, até na forma de vestir, na casa em que habitamos, o carro, o secretário, a corte. Tudo isto deveria mudar. Deveríamos ser muito mais naturais, cidadãos mais próximos e deixar aquilo que vem de outras épocas que não deve ser destruído, mas devemos viver em situações normais.
Seria mais útil?O próprio Vaticano poderia entregar as coisas que lá tem. Mas eu refiro-me a cada um de nós, bispos, padres. Há pessoas que têm sempre de mudar de carro, comprar o melhor andar... Num país de dois milhões de pobres... A democracia portuguesa está doente. E eu pergunto, a Igreja diz isto? Não diz! Está a ver a mentalidade triste, num apagado e triste país.
O dinheiro da basílica de Fátima bem podia ter sido empregue noutra coisa...Alguém me disse que a igreja vai nascer do dinheiro dado pelos peregrinos; que é para eles se abrigarem no Inverno e no fim do Verão. Só que acho que no Inverno não há nove mil peregrinos no santuário de Fátima (...). Seria tão exemplar criar novas mentalidades - sem discursos do púlpito, como eu estou aqui a fazer, que é muito fácil - para obras sociais mais necessárias. Privilegiaria crianças ou idosos... Aquilo que acho que falta em Portugal, a partir da Igreja, é humanidade.
Estranhou que o Papa citasse o Vaticano II?Não, o Papa, no fundo, também cita os bispos.
No Vaticano II, defendeu-se o recurso a métodos artificiais para controlar a reprodução. Essa parte não está no discurso do Papa.Não, infelizmente não foi aceite pelo Papa Paulo VI.
Para a Igreja, é pecado. Para si, não é?Para mim, não é. Para mim, é um instrumento de defesa. Para mim, é um elemento promotor da vida, uma forma civilizada e inteligente de proceder.
Acha que a Igreja portuguesa pode dar a volta que o Papa pediu?Temos pernas para andar. Teremos de ter humildade de executar, de aplicar, às vezes, coisas simples, decisões que se assumem. A Igreja foi conivente com o regime de Salazar, é coisa que a gente tem que dizer. Não é pedir perdão - que pedir perdão é mudar a nossa vida. Mas a Igreja tem responsabilidade, porque a Igreja é, de facto, Jesus Cristo...
Vamos ter de terminar. O senhor escolheu o requiem de Mozart para terminarmos esta conversa. Posso perguntar porquê?Para mim, a morte faz parte da vida. A morte é a ressurreição que eu gostaria que começasse aqui, na Terra. A ressurreição seria o caminhar mais rápido do caminhar mais lento. Mas tudo o que eu fiz na Terra seria em ordem a derrotar estes fenómenos vergonhosos da morte que nós temos.


COMENTÁRIO DO PADRE MÁRIO DE OLIVEIRA
2007 NOVEMBRO 24

O meu amigo Bispo Januário Torgal Ferreira - a amizade já vem dos bancos do Seminário Maior do Porto, quando ele e eu frequentávamos o curso de Teologia, ele um ano à minha frente e já então uma inteligência brilhante que surpreendia colegas e professores - acaba de ser entrevistado pela Antena 1. Li agora mesmo o essencial da entrevista na edição de hoje do JN. E gostei. Apresenta-se muito ao meu jeito. Vai directo ao assunto. Sem papas na língua. Cortante. Profético. Certeiro. Sem os habituais e hipócritas eufemismos eclesiásticos. Pão, pão, queijo, queijo. Como sempre deverá ser entre humanos, mais ainda na Igreja. "Que o vosso falar - diz Jesus, o Mestre - seja sim, sim e não, não". Ambiguidades, nunca. Diplomacia, nunca. Demagogia, nunca. Jogos de Poder, nunca. Isso são vícios e poucas vergonhas que praticam os hipócritas. Entre humanos, e mais ainda entre irmãs/irmãos, não pode ser, não há-de ser assim. O Bispo Januário é, desde há alguns anos, titular das Forças Armadas e da Segurança. Um ministério eclesial difícil. Martirial. Duélico. Duro. Ser Bispo consequente em semelhante contexto, pode custar-lhe a vida. Porque o Evangelho, por que ele, enquanto bispo, é o primeiro responsável nesse universo muito concreto, não é castrense. Nunca foi. Nunca será. Castrense não casa, nunca casará com sororidade/fraternidade universal. Já viram um exército de homens armados até aos dentes, por terra, mar e ar, entrar pelo Iraque além e dizer aos iraquianos assustados e mortos de medo: Aqui estamos como vossos irmãos!? Pode haver sororidade/fraternidade lá onde há Poder, e Poder armado até aos dentes? O Poder, todo o Poder, mais os seus executivos, não vêm senão para matar, roubar e destruir, mesmo quando dizem que vêm para proteger e defender. Quem se atreve a dizer o contrário, sem faltar à verdade do Evangelho?! Eu sei que não tem sido fácil ao Bispo Januário o seu ministério de Homem do Evangelho de Jesus entre as Forças Armadas. As armas nunca são para abençoar pela Igreja de Jesus, a pretexto nenhum. Sempre são para destruir/transformar em arados, assim dizia já o velho Profeta Isaías, quando os tempos eram agrários. Ou - poderão/deverão dizer os profetas de hoje, nestes tempos da Globalização - em casas e em empresas que garantam trabalho com Justiça e Direitos a todos os que nelas trabalham, bem como a todos os povos deste nosso mundo-aldeia-global. Sei que o Bispo Januário tem feito o possível e o impossível para levar a carta, o Evangelho de Jesus, a Garcia, ao mundo castrense. Mas o mundo castrense, entre o qual ele é o Bispo, continua aí. De pé. De pedra e cal. Cada vez mais armado, que os tempos vão difíceis e inseguros e a tentação é apostar no Poder armado sofisticado, quando a solução seria progredir nas vias da Justiça e do respeito dos Direitos Humanos em todo o mundo, independentemente das fronteiras, sempre artificiais. E esta realidade será sem dúvida a sua Cruz, o seu calcanhar de Aquiles, a sua dificuldade, porventura, a sua derrota. Sei por experiência o que isso é. Nunca fui nem serei bispo. Mas sou presbítero da Igreja do Porto, como o meu amigo Bispo Januário começou por ser, um ano antes de mim. E nessa condição de presbítero da Igreja do Porto, fui obrigado em 1967 pelo então Administrador Apostólico da diocese, Florentino de Andrade e Silva, a ser capelão militar em África, mais concretamente na Guiné-Bissau, integrado no Batalhão 1912. Tinha 30 anos de idade e fui requisitado pelo Exército por expressa indicação do Bispo que estava ostensivamente "casado" com o regime de Salazar/Caetano, como de resto, a generalidades dos bispos portugueses de então. Poderia ter-me calado. Poderia ter pactuado com o crime que era a Guerra Colonial. Poderia dizer que a responsabilidade maior era dos bispos e passar a "batata quente" para eles. Poderia fazer de conta, fechar os olhos e deixar correr. Ganharia um bom pé de meia no final da comissão de dois anos. Mas não me resignei a ser, não fui, padre castrense, funcionário eclesiástico ao serviço do Regime. Fui o que ainda hoje sou, desde Agosto de 1962, presbítero da Igreja do Porto. E abri bem os olhos, os ouvidos e, depois, a boca. Vi o sofrimento do Povo africano e de toda a África. Escutei os seus gemidos e clamores. Comunguei a sua fome de Pão, de Justiça, de Liberdade, de Dignidade, de Autonomia e Independência, e a sua fome de Paz. Abri os braços desarmados. Abracei. Acolhi. Chorei. E meti-me, de corpo e alma, ali em plena África, a anunciar o Evangelho de Jesus, que é o Evangelho da Paz sempre desarmada e por isso sempre ou quase sempre crucificada. Quatro meses depois, já era expulso do Exército. Sem processo no Tribunal Militar. Para não dar uma bronca nacional e, sobretudo, internacional. E o bispo castrense da altura, António dos Reis Rodrigues, pactuou com tudo aquilo que o Exército fez e, não satisfeito com isso que era mais do que abominável, ainda se virou contra mim e sentenciou a meu respeito o que nunca ninguém antes havia dito: "Você é um padre irrecuperável". Assim mesmo. Na altura, interpretei esta sentença na chave em que ele próprio a proferiu. E fiquei branco como a cal perante semelhante injustiça e crueldade episcopal. Poderia (deveria?) ter abandonado a Igreja que, na pessoa deste bispo e seus colaboradores eclesiásticos mais directos, me apareceu pior do que uma puta, de pernas sempre abertas ao Poder mentiroso e assassino. Mas felizmente resisti a essa tentação. E hoje, todos estes anos depois, vejo que fiz bem, o melhor. E é por isso que até aquela sinistra sentença episcopal contra mim adquiriu aos meus olhos e entendimento um conteúdo novo, de profecia. Um padre irrecuperável, sim, não para a Igreja de Jesus, não para o serviço do Evangelho de Jesus, mas para o Sistema eclesiástico. Padre/presbítero na Igreja, mas sem ser do Sistema eclesiástico. O que, de resto, todos os presbíteros e bispos e fiéis leigos em geral, elas e eles, haveríamos de ser. E que o meu amigo Bispo Januário, nesta entrevista, está à beira de ser, se é que já não está a ser. Mas então, terá de ser, mais claramente ainda, Bispo nas Forças Armadas, mais do que Bispo das Forças Armadas. Para as fazer implodir. Porque onde está o Evangelho tem de estar a Sororidade/Fraternidade universal praticada. Não pode estar o Poder de Matar, Roubar, Destruir. Onde está o Evangelho exercitam-se práticas de amor solidário e sororal/fraterno a todos os povos, não se exercitam práticas de ataque e de defesa armada. Isso é do reino e da dimensão do Demoníaco que também existe em nós, os seres humanos, precisamente o nosso lado Demencial. Puxar por ele, estimulá-lo, exercitá-lo é inumano. Só o nosso lado Sapiencial deve ser estimulado, puxado, exercitado. A Igreja de Jesus, ou é perita/parteira nesta área, ou é mais do mesmo. E então melhor fora que não tivesse nascido, porque é pedra de tropeço, de escândalo para todas as vítimas do Poder, também do Poder Armado, o seu braço ideológico e sacralizador, quando todo o Poder é mentiroso e assassino. Intrinsecamente Demencial, o Demencial-organizado-em-acção, por isso, o Inimigo da Humanidade, dos povos. Mais um pouco, e o meu amigo Bispo Januário Torgal Ferreira estará ostracizado pelos seus irmãos bispos. Ou - e seria a boa notícia que o país tanto precisa de ouvir e ver praticada - terá com ele todos os outros Bispos, finalmente convertidos ao Evangelho de Jesus e ao Deus de Jesus. É esta conversão que faz falta e que Jesus começa por pedir/exigir a quem queira fazer-se sua discípula, seu discípulo: que comece por mudar de Deus, passe do Deus-ídolo, do Deus Dinheiro, do Deus Poder, para o Deus Vivo, criador de mulheres e de homens, filhas suas e filhos seus, irmãs e irmãos entre si, constituídos na Verdade que nos faz livres e protagonistas, responsáveis na História e por ela, como se Ele não existisse. A entrevista que ele deu à Antena 1, lúcida e corajosa, não pode cair em saco roto, não cairá em saco roto. É a voz de um Bispo, do Bispo Januário, titular das Forças Armadas e de Segurança. Que vai fazer o papa Bento XVI que ele fraternalmente convida a converter-se, a mudar de Deus? Que vão fazer os outros bispos portugueses que ele fraternalmente convida a converter-se, a mudar de Deus? Que vão fazer os homens e as mulheres das Forças Armadas e de Segurança com este Bispo que assim se acaba de expor ao país e à Igreja? E que vai fazer a Igreja no seu todo em Portugal? Eu sei que o Bispo Januário está preparado para ir até ao fim, até ao limite. E, por isso, digo: ou a Igreja toda se converte, muda de Deus, ou o Bispo Januário será sacrificado/crucificado/ostracizado. O que mais desejo é que a Igreja toda se converta, mude de Deus. Mas se, em vez disso, o Bispo Januário for sacrificado/crucificado/ostracizado como Jesus, é com ele que estarei na comunhão e na vida de todos os dias. Porque essa será também a única maneira de eu continuar a ser Igreja universal e, nela, presbítero da Igreja do Porto. O que não for assim, pode ser eclesiasticamente muito sonante e pomposo, mas é tudo mentira, por isso, Demoníaco/Demencial. E nesse peditório, não contem comigo!

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