Comunidade TOC

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Fóruns de discussão de assuntos profissionais dos Técnicos Oficiais de Contas

sábado, 1 de maio de 2010

ACÓRDÃO N.º 85/2010

Irretroactividade da lei fiscal


5. No seu Acórdão n.º 128/09 (disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional afirmou:

“[...] foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss).

Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.
[...]

Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.

[...]

A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova)”.



E acrescentou, ainda, que:

“questão diferente da que se deixou resolvida é a de saber se a decisão recorrida deve ser mantida quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade (violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição).

O tema da protecção da confiança tem sido abundantemente tratado pelo Tribunal Constitucional. Contudo – e em matéria tributária – a jurisprudência do Tribunal sobre o que queira dizer «a necessária protecção da confiança legítima» não pode deixar de ser olhada com cautela, consoante a sua produção tenha ocorrido antes ou depois da revisão Constitucional de 1997. Na verdade – e como o tem dito a doutrina –, com a formulação actual do nº 3 do artigo 103º da CRP alterou-se o lugar constitucional que o princípio decorrente do artigo 2º ocupa em matérias de natureza fiscal: a aprovação, em 1997, de um princípio geral de irretroactividade da lei fiscal veio modificar (e não diminuir ou aumentar) a relevância do princípio. Quer isto dizer exactamente o seguinte.

A proibição expressa da retroactividade da lei fiscal não tornou inútil a eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção da confiança. Como diz Casalta Nabais (Cfr. “Direito Fiscal”, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 149), a protecção da confiança não foi absorvida pelo novo preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos – nos quais, recorde-se, se não inclui o presente – não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do nº 3 do artigo 103º, inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado ou exaurido a «utilidade» do princípio da confiança em matéria tributária. Pode haver outras situações – de retroactividade imprópria, ou até de não retroactividade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da confiança”.

[...]

“No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inautêntica, retrospectiva». Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.

De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:

a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.

Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este dito presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, «não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados»”.

...


Em primeiro lugar, não se pode dizer que o Estado, através da Administração Fiscal, ao permitir durante certo período a dedução da totalidade das menos-valias obtidas em determinada alienação, possa ter criado uma expectativa de manutenção de idêntico regime para o futuro. Admitir o contrário seria aceitar um princípio de imutabilidade das leis, que se não pode reconhecer. Em segundo lugar, também não se antevê como possa a expectativa da recorrente ser havida como legítima, já que tal implicaria uma como que «proibição de retrocesso» em matéria de deduções fiscais, igualmente inaceitável. Em terceiro lugar, tão-pouco se pode dizer que a ora recorrente possa ter feito, legitimamente, um plano de vida assente no pressuposto de continuidade do “comportamento” da Administração Fiscal. Na realidade, afigura-se insustentável afirmar que a ora recorrente ao adquirir as participações sociais em causa o fez no pressuposto de, posteriormente, independentemente até de qualquer “proximidade temporal” entre a aquisição e a alienação – que poderá vir a ocorrer décadas após –, as vir a alienar com prejuízo, deduzindo, nesse caso, a totalidade das menos-valias. Em quarto e último lugar, parece existir uma razão de interesse público subjacente à alteração legislativa em causa: obter uma mais justa e equilibrada repartição de encargos fiscais entre as diversas espécies de contribuintes, dado que o regime resultante do artigo 42º, n.º 3, do CIRC, apenas se aplica, por definição, a contribuintes que tenham a natureza de pessoa colectiva ou afim.


Não é, assim, possível concluir, como pretende a recorrente, pela violação do “princípio da segurança jurídica, estabelecido no art° 2° da Constituição da República Portuguesa”.

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