DOCUMENTO ELABORADO POR UM GRUPO DE COLEGAS
ALTERAÇÕES AO CÓDIGO CONTRIBUTIVO
Introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/2018 de 9 de janeiro
Importa voltar ao ponto de partida e
recordar o documento de trabalho de 22 de Abril de 2008
do Ministério do Trabalho:
“Nesse sentido, o Governo propõe:
• cometer às empresas
utilizadoras dos serviços de trabalhadores abrangidos pelo regime de trabalho
independente uma parcela de 5 pontos percentuais da taxa contributiva,
calculada sobre a presunção de rendimento decorrente do regime a vigorar, que
hoje é totalmente suportada por aqueles trabalhadores.”
In documento de trabalho de 22 de Abril de-2008
Esta proposta, por um lado, parece
querer penalizar os chamados “falsos recibos verdes”. Por outro lado, parece
querer alargar a aplicação de taxas contributivas ao adquirente de serviços em
geral, estabelecendo uma comparação com aquilo que acontece no trabalho
assalariado nas empresas e nos trabalhadores domésticos.
Paralelamente, pretende-se utilizar
na Segurança Social o cálculo das bases contributivas baseadas em percentagens
do volume de negócio, à semelhança do que acontece no regime simplificado em
IRS.
Estas ideias, algumas já transpostas
para a lei em vigor, têm ignorado factos e problemas muito relevantes. Em
resumo, chamamos a atenção para cinco questões:
(1) O conceito difuso e subjetivo de
prestação de serviços.
(2) A diferença entre valor contratado e
rendimento efetivo.
(3) As especificidades que distinguem o
contrato de trabalho dos contratos de compra e venda ou prestação de serviços.
(4) Os problemas de transparência e de concorrência.
(5) A dificuldade prática de generalizar
o pagamento de contribuições em cada contrato.
O conceito difuso e
subjetivo de prestação de serviços
De uma forma simples, podemos dizer
que a prestação de um trabalhador assalariado consiste em efetuar um trabalho,
para o qual é requerido um esforço físico ou intelectual. As atividades de
prestação de serviços situam-se próximas desta realidade, no sentido em que nelas
se executam trabalhos, mas resultando de um diferente vínculo contratual. Inversamente,
na atividade comercial ou industrial estamos perante a mera troca de bens,
produzidos ou comprados, por dinheiro. Contudo, esta ideia assenta em meros estereótipos
que não resistem à observação da realidade. Com efeito, tudo é serviço.
Vejamos o comércio de carne. Trata-se
de comércio puro, dir-se-á. Contudo, o talhante, ao vender carne, presta um
serviço. Ele executa um trabalho, isto é, despende esforço físico e intelectual
(eis o serviço!) de organizar e gerir um estabelecimento, efetuar compras,
armazenar a carne, cumprir um horário de atendimento dos clientes, cortar as
peças de carne de acordo com a qualidade encomendada, pesar, embalar, etc.,
etc. Numa perspetiva mais ampla, o comércio em geral não é mais do que um
conjunto de serviços que soluciona duas dificuldades do consumidor: uma
espacial, o acesso a bens produzidos à distância (transporte) e uma temporal, o
acesso no momento em que se pretende consumir (armazenamento).
Por sua vez, ao realizar uma obra de
construção, o empreiteiro presta um serviço. É assim que, juridicamente, se
encontra definido o contrato de empreitada. No entanto, tal como o talhante, o
empreiteiro faz comércio, pois, compra bens, que depois manipula, transforma e
fatura como componente do preço final da empreitada.
Por este ponto de vista, as
diferenças entre o comerciante de carne e o prestador de serviços de empreitada
são, afinal, menores do que as semelhanças. Ambos fazem compra e venda de bens,
ambos adquirem serviços necessários à atividade (seguros, comunicações, etc.) e
ambos trabalham. Ora, esta complexidade existe, em maior ou menor grau, em
qualquer atividade económica.
Vejamos, ainda, mais dois exemplos.
Quando trocamos os pneus a um automóvel, o vendedor executa vários trabalhos
(desmontagem, montagem, calibragem, eventualmente alinhamento da direção). O
preço final paga tudo isto, o comércio dos pneus e os serviços complementares.
Pensemos, agora, num construtor que constrói um muro. Ele pega em tijolos,
cimento e tinta, e transforma-os num produto final, um muro, que vende ao
cliente. O construtor fez exatamente o mesmo que o industrial: transformou
matérias-primas num produto acabado. Mas, para efeitos de tributação, fez um
“serviço de construção”.
Na realidade, a distinção entre
indústria, comércio e serviços é artificial, feita com propósitos jurídicos,
estatísticos e outros, não atendendo a uma especificidade inequívoca das suas caraterísticas,
nomeadamente no que diz respeito à utilização de bens e ao esforço físico e
intelectual que qualquer atividade económica exige.
O regime contributivo dos
trabalhadores independentes, bem como a legislação fiscal, têm esbarrado,
sistematicamente, nesta dificuldade, nomeadamente no que diz respeito às
retenções na fonte, às regras de faturação em IVA e ao cálculo do rendimento
relevante. O artigo 4.º do CIRS, por exemplo, pretende distinguir o estranho
conceito de serviços-que-não-são-serviços, acabando por fazer uma enumeração
meramente exemplificativa. A confusão é enorme.
Ou seja, se se pretende que, nos
contratos comerciais, os adquirentes fiquem sujeitos a obrigações
contributivas, então, todas as atividades sem exceção deveriam ser incluídas e
não apenas aquelas que, erradamente, se julgam ser exclusivamente serviços,
tendo em conta a sua designação ou uma classificação que é artificial.
A diferença entre valor
contratado e rendimento efetivo
Muitas atividades geram um valor
acrescentado relativamente grande, pois consistem em serviços que exigem uma
diminuta incorporação de bens ou de serviços adquiridos a terceiros. É, em
geral, o que acontece com as denominadas profissões liberais, definidas no
artigo 151.º e na tabela anexa do CIRS. Mas, como vimos no exemplo das
empreitadas de construção, o prestador de serviços pode incorporar no preço da
empreitada um valor considerável de bens e de serviços que não foi ele que
produziu. Isto não acontece só nos “serviços” de construção, isto é, no pintor,
no canalizador ou no pedreiro. Acontece, também, no cabeleireiro, no taxista e
em muitas outras atividades. Não é possível, portanto, determinar o rendimento
real, aquele que é relevante para efeitos contributivos, a partir do valor
faturado dos contratos realizados.
É, também, incompreensível que se
pretenda comparar esta realidade com os contratos de trabalho, onde o valor da
contraprestação corresponde a trabalho puro.
As contribuições para a Segurança Social
têm de ser calculadas com base no rendimento efetivo das empresas e não com
base no valor das operações faturadas. No entanto, admitindo a existência da
utilização de métodos simplificados, verifica-se que os conceitos de rendimento
tributável em sede de IRS e de rendimento relevante para efeitos do Código
Contributivo são bastante divergentes e deveriam sofrer a mesma aproximação que
em 2009, com a aprovação deste Código, se fez no regime geral, com o rendimento
do trabalho dependente em IRS.
Assim, o Código Contributivo deveria
remeter para a aplicação das taxas prevista no artigo 31º do Código do IRS
(regime simplificado):
· 0,15 para a venda de mercadorias e
produtos e não os 20%;
· 0,75 para as atividades elencadas na
lista anexa do IRS e não os 70%;
· 0,35 para as restantes prestações e
não os 70%
Deveria, também, considerar tudo o
que está previsto em todo o artigo 31º, incluindo as limitações.
As especificidades
próprias que distinguem o contrato de trabalho dos contratos de compra e venda
ou prestação de serviços.
A comparação das atividades de
serviços com os contratos de trabalho é, também, desadequada devido às
especificidades das situações. Perante situações de risco, como a doença, a
invalidez ou o desemprego, o Estado garante proteção social aos trabalhadores
assalariados. Tal não acontece, de forma igual, com os empresários e os profissionais
individuais. Mas, acima de tudo, a proteção social ignora o risco económico
inerente à manutenção de uma empresa. O empresário, independentemente do valor que
fature e receba, pode ter rendimentos anuais muito variáveis ao longo do tempo.
E pode mesmo ter prejuízos, os quais vão ser suportados pelos rendimentos
obtidos noutros anos. Mas esta situação é ignorada pela proteção social, que
neste momento afirma: “Há vendas? Tributem-se! Há prejuízos? Ignorem-se!”.
Contrariamente, os assalariados,
desde que trabalhem e recebam o seu salário, têm garantido um rendimento
exatamente igual a esse salário. Estamos, portanto, perante realidades
distintas, não comparáveis, para efeitos de sujeição a uma mesma lógica
contributiva.
Os problemas de
transparência e de concorrência
Imaginemos uma empresa que contrata
os serviços de um profissional individual, tendo sido acordado o preço de 3.000
euros. No final do ano, verifica-se que estes 3.000 euros representam 60% da
faturação do profissional, pois, além deste serviço, ele só faturou mais 2.000
euros. Há muitas razões para que isto possa acontecer. Por exemplo, o prestador
do serviço fez evasão fiscal, ou morreu, ou cessou a atividade, ou estava em
início de atividade, ou faz pouco serviço porque tem outras fontes de
rendimento. Assim, no final do ano vem a Segurança Social exigir à empresa o
pagamento de mais 210 euros (7%). E poderiam ser 300 (10%), caso a faturação do
profissional fosse ainda menor. Isto é uma coisa completamente absurda. Não
existe transparência nem segurança contratuais no mercado. O preço, afinal, não
é o acordado pelos contratantes, fica dependente do acaso. Se o prestador de
serviço foge ao fisco, esta contribuição é ainda uma intolerável injustiça em
termos cívicos, pois quem sofre as consequências da fuga é a entidade
contratante que exigiu fatura.
Imaginemos agora um contabilista que,
de forma independente, faz serviço a 10 empresas, cobrando uma avença mensal de
250 euros a cada uma. A sua faturação mensal é, portanto, de 2.500 euros. Neste
caso, nenhuma das empresas é chamada a contribuir para a Segurança Social.
Consideremos agora outro contabilista que, de forma também independente, faz serviço
a 5 empresas. À empresa Alfa, que é relativamente grande, cobra 1.500 euros
mensais, faturando 250 a cada uma das quatro restantes. A sua faturação mensal
é, portanto, igual à do primeiro contabilista: 2.500 euros. Contudo, a empresa
Alfa é obrigada a contribuir para a Segurança Social com 105 euros mensais
(7%), 1.260 euros anuais, enquanto as outras 14 empresas (de ambos os
contabilistas) não contribuem.
Estes exemplos mostram que a lei em
vigor distorce arbitrariamente a realidade, originando encargos adicionais a
algumas empresas sem qualquer fundamento coerente e racional, quer do ponto de
vista económico, quer em termos de equidade social.
Mas, mesmo que não existissem estas
distorções, a lei atual inquina, de forma inaceitável, a livre concorrência.
Com efeito, nos casos em que há transparência na situação contratual, a
entidade contratante, para não suportar o encargo, tenderá a deixar de recorrer
aos serviços destes profissionais, procurando outros que não a onerem enquanto
empresa contratante ou, simplesmente, contratando apenas com sociedades
comerciais a quem este regime não se aplica. Esta opção contribui para a
destruição da atividade de entidades singulares no tecido empresarial. Os
profissionais individuais enfrentam, portanto, uma situação legal que distorce
a concorrência.
Acontece que os efeitos legais
resultantes da distinção entre empresários individuais e sociedades têm sido,
em muitos casos, anedóticos. O reconhecimento jurídico das sociedades
unipessoais veio simplificar, ainda mais, o processo, sempre existente, de
“transformar” as atividades individuais em sociedades. Esta “transformação”, na
substância, mantém tudo igual na estrutura empresarial existente, apenas muda o
nome jurídico da empresa. As transformações, de facto, só ocorrem a nível
contributivo. Que lógica e que justiça existem neste tratamento tão
diferenciado?
A dificuldade prática
de generalizar o pagamento de contribuições em cada contrato
Ultrapassemos todas estas
dificuldades e suponhamos que seria possível sujeitar todos os serviços
adquiridos à comparticipação de uma taxa, independentemente do tipo de
adquirente. A cobrança dessa taxa seria tecnicamente viável? Vejamos alguns
exemplos:
Nos serviços do médico, dentista,
veterinário, enfermeiro, fisioterapeuta, psicólogo, notário, advogado, solicitador,
explicador ou ama, cujo valor seja de 50 €, por mero exemplo, e partindo do
princípio da sujeição da taxa de 10%, antes do IVA, caso exista, seria prático
e exequível os adquirentes entregarem à Segurança Social os 4 ou 5 euros
exigidos em cada serviço?
E pensemos
em serviços cujo valor é inferior ou pouco excede os 10 €. Cabeleireiros, barbeiros,
lavandarias, cafetarias, lavagens de automóveis, pequenas reparações de eletrodomésticos,
viagens de táxi, reconhecimento de assinaturas, um sem número de prestações
efetuadas nos seus estabelecimentos por estes e por outros prestadores de
serviços. Seria prático e exequível o pagamento de cerca de 1 euro, a entregar
pelos adquirentes à Segurança Social, em cada uma das operações?
Não é
difícil reconhecermos a enorme dificuldade de concretizar este sistema. O
trabalho burocrático necessário é totalmente desproporcionado com o efeito
financeiro que dele resulta. Um parêntesis, para referir que há anos que temos
vindo a sugerir que se liberte a obrigação de retenção na fonte de IRS nos
notários, pela dispersão que causa – centenas de entidades retentoras – criando,
aos notários e aos serviços fiscais, enormes dores de cabeça e desnecessárias
perdas de tempo, na vã tentativa de acertar as inúmeras falhas originadas pelos
incumpridores. Também em retenções nos serviços de baixo valor, como na
reparação automóvel, se verifica a mesma dispersão, pelo que todos sairíamos a
ganhar caso estas retenções (de 11,5%) fossem aplicadas só a valores acima dos
1.000 €, mesmo que pagos de forma faseada.
Por
outro lado, esta dificuldade burocrática levaria, também, os adquirentes a
optar progressivamente pela contratação de sociedades, em detrimento das
empresas individuais.
Assim,
urge rever os princípios que parecem enformar as últimas alterações
legislativas, abandonando-se o sistema de contribuição devido pelos adquirentes
e minimizando as distorções causadas por uma classificação artificial que tem
por base o conceito pouco objetivo de “serviços”.
CONTABILISTAS
CERTIFICADOS
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